Por que situações corriqueiras ainda são obstáculos a famílias LGBTQIA+?
Tirar o RG do filho, por exemplo, pode trazer desconforto e constrangimento para essas pessoas. Veja três depoimentos emocionantes!
Pai, mãe, filho(s) e filha(s). Já faz algum tempo que as configurações familiares extrapolam esse padrão. Família vai muito além da orientação sexual de quem a compõe: é amor, é cuidado, é afeto, é responsabilidade. Apesar disso, a realidade para pessoas LGBTQIA+ ainda hoje é marcada por incompreensão e preconceito.
No Brasil, é esse preconceito que, em pleno século 21, impede a produção de dados oficiais sobre essa população. Não se sabe ao certo a quantidade ou mesmo a porcentagem de pais homossexuais, bissexuais, transexuais, intersexuais, entre outros. Em 2022, pela primeira vez, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou a contagem populacional de homossexuais e bissexuais, na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Contudo, o medo faz com que muita gente ainda esconda a verdade sobre sua orientação, levando à subnotificação.
De acordo com o levantamento, 2,9 milhões de brasileiros se identificaram como homossexuais ou bissexuais. “Não estamos afirmando que existam 2,9 milhões de homossexuais ou bissexuais no Brasil. Estamos afirmando que 2,9 milhões de homossexuais e bissexuais se sentiram confortáveis para se autoidentificar ao IBGE como tal”, destacou a analista Nayara Gomes, em entrevista coletiva. Já é um começo.
Na pesquisa, não há, por exemplo, dados de quantas dessas pessoas têm filhos. Vale lembrar que a presença de crianças muitas vezes faz com essas famílias ainda sofram com mais discriminação e com outros entraves burocráticos. É aí que atividades simples e corriqueiras para a maioria dos indivíduos se tornam uma dificuldade ou um desconforto para elas, em meio a ambientes heteronormativos.
Para chamar atenção para o assunto e destacar a urgência de mudanças, conversamos com três famílias LGBTQIA+, que contaram alguns obstáculos que costumam enfrentar com os filhos no dia a dia.
“Não sou mãe”
“Embora, hoje, no documento conste ‘filiação’, e não ‘mãe e pai’, quando fomos tirar o RG da minha filha, a atendente disse que aparecia os campos ‘pai’ e ‘mãe’ para preencher e perguntou o que ela deveria fazer. Fui muito sincero e falei: ‘Eu não sei. Só sei que minha filha não tem mãe’. Em alguns momentos, sei que acabamos até sendo grosseiros, mas talvez como uma forma de defesa. Ela me entendeu, obviamente.
A solução ali foi colocar o nome dos dois pais no campo ‘pai’, separados por um hífen. Aceitamos, porque era o jeito para que nenhum dos dois ficasse no campo ‘mãe’ no cadastro. Isso acontece com a carteirinha do Sistema Único de Saúde (SUS). Meu nome está no campo ‘mãe’. Eu não sou mãe!
Parece algo simples, mas isso nos deixa desconfortáveis. Não são coisas complicadas de resolver, mas falta um pouco de vontade, aparentemente, da parte dos órgãos e das instituições. Quando somos acolhidos, conseguimos acolher o outro e diminuir sua dor”.
Eduardo Domingos, 34 anos. Junto de Thales Vitorino, 40, é pai de Melissa, 4.
“Praticamente uma humilhação!”
“Uma grande dificuldade que ainda enfrentamos em relação à dupla maternidade, com certeza, são os formulários que temos de preencher. Sempre esbarramos em nomenclaturas heteronormativas, tendo que colocar ali ‘pai’ e ‘mãe’. Isso nos atravessa muito, porque é algo simples de resolver e uma mudança a que as pessoas ainda resistem bastante – seja no âmbito escolar ou até em algo maior, como no caso da Receita Federal.
Somos a primeira família que venceu um processo contra a Receita para mudar o sistema e incluir também meu nome como uma das mães do Benjamin. Dói e é até muito difícil falar sobre isso. É só colocar ‘filiação’ ou ‘responsável 1 e 2’. Recentemente, estávamos preenchendo o formulário para tirar o visto do nosso filho e tivemos que colocar o nome da Camila no campo ‘pai’. É praticamente uma humilhação. Ele não tem pai.
Outra dificuldade é a pouca representação cultural das famílias diversas, seja em livros, filmes, músicas, desenhos…. Temos muito mais representações heteronormativas do que das famílias diversas. Muitas vezes, há uma representação de dupla maternidade em um episódio isolado de um desenho X ou em um livro que uma família homoafetiva escreveu. Ainda é muito pouco!
A informação tem de estar nas famílias diversas ou disponível para quem quer constituir uma família diversa, mas também deve estar em famílias heteronormativas, para diminuir cada vez mais a LGBTfobia”.
Paula Dalalio Frison, 34 anos, mãe de Benjamin, 2 anos e 10 meses, junto com Camila Krauss Provenzano, 43.
“O pai dele sou eu!”
“Conheci a Tainara aos 35 anos e formamos nossa família LGBTQIA+. Juntos, temos o João. Sou um homem trans e minha esposa é uma mulher cis. João é meu filho de coração. Quando comecei a conversar com a Tainara, ela estava grávida. Quando João nasceu e segurou meu dedo, tive a certeza de que havia me tornado pai.
Eu já tinha feito todos os trâmites de documentação e alterado tudo, então, não foi um problema registrá-lo em meu nome, mas toda vez que uma pessoa nova vem nos conhecer, pergunta: ‘E o pai do João?’. Eu e a minha esposa respondemos que o pai dele sou eu.
Outra situação desconfortável são os olhares e cochichos quando vamos à piscina, por exemplo. Como ainda não fiz a mamoplastia masculinizadora, uso uma faixa nos seios chamada ‘binder’. O João não vê diferença, porque ainda é muito pequeno.
Eu e a Tainara sempre conversamos abertamente sobre diversos assuntos e, quando nosso filho tiver idade para entender, vamos ter o prazer de sentar com ele e explicar toda a trajetória – tanto a dele, como a minha. Vivemos em uma sociedade preconceituosa e precisamos compreender que o melhor para o João é ele saber da história da família dele pelos pais, que vão falar com cuidado, respeito e muito amor!”
Léo Godoy, 38, pai de João, 2 anos e 9 meses, junto com Tainara Vellado, 27.