“Minha filha trans me fez entender que cada pessoa é única”

Conheça a história da família de Cleber e Gustavo, pais de três crianças, entre elas a menina trans Maria Joaquina, de 12 anos.

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 12 jul 2020, 16h00 - Publicado em 12 jul 2020, 16h00
 (Reprodução/Arquivo Pessoal)
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Em 2017, o Bebê.com.br publicou sua primeira matéria sobre a disforia de gênero na infância, contando a história de crianças trans e suas famílias. Entre elas, a do casal Cleber Reikdal e Gustavo Cavalcanti Uchôa, de Curitiba, pais de Maria Joaquina, hoje com 12 anos, prestes a iniciar seu tratamento hormonal. 

Três anos depois, convidamos Cleber, que tem 40 anos e é especialista em patinação, a contar em detalhes sua experiência com a dupla paternidade e a adoção. Seu relato é de uma ternura e leveza inspiradoras. Confira! 

Casamento e decisão pela paternidade 

“Eu e o Gustavo estamos casados há 13 anos, desde 2007. Nos conhecemos pelo Orkut, lembro até hoje de ver uma foto dele com raios nos olhos e o adicionar como amigo. Começamos a conversar, namorar, e assim se passaram quase 10 anos intensos, juntos. 

Durante esse tempo, sempre sabíamos que faltava algo em nossas vidas, mas na primeira vez que entramos com o processo de adoção, acabamos parando no meio. Exatamente dois anos depois disso, no mesmo dia até, retomamos o processo. Digo que são aquelas coisas divinas: parecia que não era para ser naquele primeiro momento. 

Mas da segunda vez foi tudo muito rápido, e logo o processo de adoção saiu. Ficamos habilitados em agosto, e no dia 21 de setembro a Vara de Infância me ligou avisando sobre três irmãos em busca de uma família. Esse dia e os próximos foram muito intensos, na expectativa do encontro. 

Em outubro, estávamos viajando para São Paulo e o pessoal ligou novamente, informando que iríamos poder conhecer as crianças. Voltamos na hora para Curitiba.”

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A adaptação das crianças 

“Em 2016, as crianças chegaram, dois meninos e uma menina. Durante a fase de habilitação para a adoção, sempre escutamos coisas desfavoráveis, mas o processo acabou sendo tranquilo para nós. É claro que sempre tivemos ciência que o filho não é um boneco, que dá trabalho, mas as questões que tivemos eram coisas simples como dificuldades de aprendizado, recusa de legumes e assim por diante. 

Acredito que a maior diferença entre ter o filho biologicamente é que você tem 9 meses para saber que vai ser pai, dá para se acostumar com a ideia e ir programando o seu futuro. Eu sou uma pessoa de planejamentos, mas na adoção, não existe um tempo exato para nada, e a vinda das crianças tão repentina foi uma mudança radical. 

Como as crianças já tinham 4, 6 e 8 anos tínhamos que descobrir aspectos da personalidade e da história delas, mas creio que para nós foi ótimo que elas fossem mais velhas, pois nosso estilo de vida não comportaria a chegada de um bebê, por exemplo.”

A transição de Maria Joaquina 

“Quando Maria Joaquina, então com 8 anos, começou a se vestir com roupas e acessórios da irmã mais nova, não conseguimos compreender muito bem, porque sempre temos a nossa experiência de vida como a verdadeira. Eu me entendia como sendo gay, mas nunca precisei usar roupas de menina. 

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Então levamos tanto a Maria ao psicólogo, o que me ajudou a entender que todas as pessoas são únicas, cada um tem sua história. A Maria conseguiu se entender melhor também, passou a fazer o acompanhamento no Hospital das Clínicas (HC-USP) em São Paulo. Seu processo de adaptação foi fluído, mas houve suas dificuldades no início, até entendermos que as pessoas não precisam se enquadrar nas caixinhas pré-estabelecidas pela sociedade.

O momento mais estranho é o início da transição, quando ela deixou de se expressar como um gênero e passou ao outro. Tivemos que aturar dez mil pessoas dizendo que deveríamos forçar ela a ser menino, colocar no futebol, proibir de usar a roupa que quisesse, mas os profissionais do HC e a psicóloga sempre nos orientaram a acolher. 

Então respeitamos as demandas dela e, com o tempo, algumas pessoas passaram a respeitar também, enquanto outras deixaram nosso círculo de amizades. Hoje as pessoas não conseguem vê-la não sendo menina. Ela começará este ano, com 12 anos, seu tratamento hormonal.”

Aprendizados como pai de uma criança trans 

“Acredito que o principal entendimento que a paternidade trouxe foi aprender a lidar com as diferenças. Não só da Maria, mas de todos os outros filhos. Cada um tem a sua demanda, e a gente precisa do jogo de cintura para que todos convivam felizes. 

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No HC, vemos casos mais fáceis, mas alguns mais difíceis. Quando a criança se encontra em um meio opressor sente mais dificuldades. Muitas pessoas acham que o meio é quem muda ou não a criança, que é possível “transformar” ela, mas na verdade ele só permitirá ou atrapalhará sua expressão. 

Acho que a principal dificuldade que vemos em algumas crianças é a própria expectativa dos pais. O filho ainda é novo e os pais já traçaram seu plano de vida, e daí sentem que, com essa nova realidade, a criança não irá atender às expectativas deles para seu futuro. Recebemos muitos questionamentos de outras famílias sobre crianças trans.

O que posso dizer nesses casos é que os pais não impeçam a criança de viver seus sonhos e suas realizações por preocupação do que os outros pensam. Nossa família já foi vítima de preconceito sim, ele existe e muito. Não só pela Maria, mas pelo fato de eu ser gay, já perdi até alunos por conta disso. Mas assim é a vida, vamos conhecendo e nos cercando de pessoas que acreditam que cada um é cada um e aceitam as diferenças.”

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