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“Que minha história incentive mães a aceitar um filho gerado pelo coração”

Bianca adotou Alec com quase dois anos e fala sobre as mudanças no quadro de paralisia cerebral do filho durante a quarentena.

Por Flávia Antunes
Atualizado em 11 jun 2020, 17h52 - Publicado em 11 jun 2020, 17h42

Não é novidade que a pandemia do novo coronavírus mexeu com as nossas rotinas. As famílias sentiram o clima de apreensão e incerteza que a doença trouxe consigo e cada qual manifestou ao seu modo: pais sobrecarregados, muita insônia, filhos fazendo mais birra, comportamentos regredindo…

A questão se complica ainda mais quando colocamos outras variáveis na conta – como crianças que dependem de tratamento presencial para continuar tendo melhorias no seu quadro. E este é o caso do Alec. O pequeno de três anos, morador de São Bernardo do Campo, nasceu com paralisia cerebral e teve sua adoção oficializada há pouco mais de um ano.

Bianca Mueller Costa, advogada de 40 anos, já convivia com o filho desde outubro de 2018 e acompanhava cada passo de sua evolução. Com a quarentena decretada – e sem acesso a todas as atividades e consultas do menino – “a vida virou de cabeça para baixo”, em suas palavras. No relato, mais do que contar sobre as mudanças comportamentais de Alec, a mãe abriu seu coração sobre um tema delicado, mas que toca muitas mulheres: o preconceito com seus filhos.

“Que minha história possa aquecer alguns corações, acalmar algumas mães, incentivar o mundo a aceitar um filho gerado pelo coração. Um filho diferente de você e um filho mais que especial”, espera Bianca. Confira o depoimento na íntegra:

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O processo da adoção

“Eu descobri que não poderia ter filhos com 22 anos. Tive um problema neurológico, hidrocefalia, quando era adolescente, e descobrir que não poderia ter filhos foi um choque, porque meu sonho era viver a maternidade – minha mãe até brincava que, em vez de comprar livrinhos infantis, eu comprava livro de parto, de grávida, de tão alucinada que eu era por gerar. Isso durante alguns anos foi uma questão bem presente para mim.

Até que o tempo foi passando, fui aprendendo e descobri que não queria gerar: queria ser mãe. Então, com 34 anos, eu decidi entrar na fila da adoção. Fui no fórum, participei de todo o processo e fui tratada como uma verdadeira gestante. É horrível, mas você preenche uma ficha dizendo o que você não quer na criança… Não coloquei restrição, porque, para mim, se você vai ter um filho, você não escolhe como ele vai vir ao mundo. Mesmo deixando as possibilidades abertas, ainda esperei por cinco anos.

Em agosto de 2018, me ligaram dizendo que tinha uma criança que eu poderia conhecer. A psicóloga do fórum foi bem sincera comigo, disse para eu não criar expectativa, porque era um menino de um ano e sete meses e com deficiência.

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Chegando lá, ela me apresentou uma criança com paralisia cerebral, que teve hidrocefalia e nasceu de 30 semanas. Ela fazia acompanhamento desde os sete meses de idade, porém não teve avanço no quadro desde então. Disse ainda que era um menino que jamais iria interagir comigo. Naquele mesmo dia, eu fui direto para o abrigo e conversei com a assistente social.

Na hora que eu conheci o Alec, fiquei apaixonada por ele… Foi amor à primeira vista. Ele fazia o mínimo de contato visual, ficava com as pernas cruzadas o tempo inteiro e o máximo que conseguia fazer de movimento era levantar a cabeça. No dia seguinte, respondi que queria continuar a conhecê-lo.

Comecei uma aproximação com ele e este processo foi um choque para mim – bem grande, mas também maravilhoso. É um mundo cheio de medo e de insegurança, mas também cheio de amor. Em março do ano seguinte, tive a adoção oficializada.

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Desde então a vida mudou. O Alec nem se mexia no começo, e hoje ele consegue ficar em pé segurando nas coisas. Ele emitia grunhidos e nem tinha contato visual, e agora fala super bem – mais que eu, inclusive!

Por ser uma criança que precisa de estímulo 24 horas por dia, acabei optando por trabalhar em casa para me dedicar à maternidade. O Alec frequenta a creche, a escolinha e faz tratamento duas vezes por semana, de fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiólogo.”

Então o coronavírus chegou…

“Meu filho já está afastado das atividades desde uma semana antes da quarentena ser decretada, porque, além da paralisia cerebral, ele também tem hidrocefalia – o que o coloca como grupo de risco total para a doença.

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Assim que o isolamento social foi oficializado, eu decidi vir morar com meu namorado, porque ele me dá um apoio maior e tem carro, o que facilita se eu precisar levar o Alec ao médico. Com isso, além de toda a mudança por conta da reclusão e da interrupção das aulas, que ajudavam muito no desenvolvimento dele, também tivemos a mudança da casa.

Tudo isso prejudicou muito no que vínhamos desenvolvendo com o Alec. Desde agosto do ano passado, ele teve uma regressão muito grande do quadro. Teve alterações grandes de humor, começou a ter convulsão e, quando começou a melhorar, veio a quarentena. Sendo assim, todo o tratamento que ele faz foi interrompido – exceto o atendimento com a neurologista-, e driblar isso está sendo extremamente difícil. A vida virou de cabeça para baixo e ele teve uma regredida bem drástica novamente.

(Bianca Costa/Arquivo Pessoal)

O primeiro aspecto afetado foi o físico. O Alec voltou a ficar de pé só agora, mas está utilizando andador e tive que providenciar uma cadeira de rodas. Eu tenho que carregá-lo para cima e para baixo. A mudança também afetou o sono, tanto a soneca da tarde quanto da noite, até por conta de não gastar tanta energia. Além disso, ele começou a ter distúrbios de comportamento, ficou mais agressivo – não é uma agressão em relação às outras pessoas, mas uma forma de se comunicar, de tentar se expressar.

A euforia também apareceu, então ele começa a dar gargalhadas que depois se transformam em choro. São situações comuns para crianças como o Alec mas, em decorrência da quarentena e de não ter acompanhamento, elas se intensificam de forma assustadora. 

Não dá para romantizar. Mas, mesmo assim, ainda digo que sou privilegiada, porque como fiz questão de acompanhar o Alec em muitas das terapias, consigo reproduzir vários aprendizados em casa – até com a orientação das terapeutas. Infelizmente, a maioria das mães não tem essa rede de apoio. 

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“Como mãe, estou aprendendo a ser uma peneira, e não uma esponja”

“Para mim, é um sonho ser mãe. Eu tive uma vida não muito fácil e, quando virei mãe, consegui entender a realidade do amor. O Alec veio para me mostrar isso. O segundo aprendizado que consigo tirar da relação com meu filho é sobre superação. O quanto o estímulo da atenção, do carinho e do amor são importantes para o desenvolvimento dele e como ele retribui este amor – o Alec acorda todos os dias sorrindo, nunca o vi mal-humorado.

(Bianca Costa/Arquivo Pessoal)

Ele me ensinou a ser mais grata ainda pela vida, mas também me fez ver que o mundo não é tão rosa quanto eu achei que fosse – e essa é a parte mais doída. O Alec é negro, adotado e deficiente, o que o torna alvo de muitos tipos de preconceito. Eu sou branca e nunca senti na pele o racismo. No meu mundo não existia, mas no dele existe. Como mãe de uma criança negra, estou vendo que existe um preconceito absurdo. Meu filho recebe mais olhares de desprezo e de piedade do que de amor.

Eu, como mãe, estou aprendendo a ser uma peneira, e não uma esponja. A  minha tentativa diária é de peneirar, de não absorver toda essa negatividade e de não guardar sentimentos de raiva, de revolta… Tento filtrar, para que isso não afete a rotina do Alec e para que chegue como um incentivo para ele. Quero preparar o meu filho para que isto não o entristeça. Para que ele aprenda que é amado do jeito que é e capaz de fazer o que quiser.

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