Em pleno 2020, milhões de famílias brasileiras ainda sofrem por conta do racismo. Seja por ver filhos excluídos das brincadeiras, ler comentários maldosos na internet ou mesmo ser acusada de sequestrar a própria filha por ter uma cor de pele diferente da dela.
Muito disso ainda é encarado como brincadeira ou escondido sob o discurso que somos todos iguais. Só que minimizar e varrer para debaixo do tapete não é a melhor maneira de lidar com o preconceito, garantem as especialistas ouvidas nesta reportagem. “Desde bebê, o filho precisa saber que existem pessoas diferentes e como lidar com elas”, resume Livia Marques, psicóloga e autora do livro Dandara e Vovó Cenira (Editora Sinopsys).
Ou seja, por mais dolorido que seja, precisamos falar sobre o assunto com as crianças. “Para os negros, não é uma opção, pois sentimos na pele todos os dias, mas para a família branca, muitas vezes isso não é uma questão”, comenta Deh Bastos, publicitária criadora da rede de comunicação antirracista.
Ela e a sócia, a jornalista Paula Batista, criaram a iniciativa a partir de suas próprias experiências. Deh é mãe de um menino de pele mais clara que a dela, de 1 ano e 8 meses, com pai branco, e Paula é madrasta de duas meninas brancas.
A vontade de incluir mais gente na conversa sobre racismo, como elas fizeram com as famílias, é o norte do projeto, que dá consultorias em escolas e promove palestras para orientar pais.
Veja a seguir algumas dicas delas e da Livia para trazer o diálogo para dentro de casa.
Seja um exemplo
Não adianta esperar que a criança lide com as diferenças na rua se, no ambiente familiar, os pais fazem piadas com isso e estão cercados de negros apenas como funcionários, muitas vezes invisíveis.
A ideia é fazer uma autoavaliação da vida dos adultos: quem são os amigos mais próximos e que oportunidades a criança tem de conviver com pessoas diferentes? E, mais importante ainda: como o diferente é tratado pela família?
Mostre a diversidade na prática
Quando o filho ainda é pequeno, é bacana inserir referências diferentes, de outras culturas e raças, em suas brincadeiras, bonecos, personagens de desenho, músicas, passeios e por aí vai. Conforme ela cresce, o ideal é que o tópico faça parte das conversas em família de maneira transparente.
O termo é letramento racial. “Que é compreender que estamos em uma sociedade racista, e as crianças brancas precisam refletir sobre onde estão os negros, e questionar isso com a gente”, comenta Paula Batista. Explique que existem pessoas que tratam mal outras pessoas só por causa da cor da pele ou de características físicas, que há injustiças no mundo e que é responsabilidade de cada um mudar esse cenário.
Empoderando crianças negras
E isso vai além de ter bonecas de pele escura. “Hoje somos marginalizados, então a criança precisa saber que há possibilidades fora da subalternidade, que existem reis e rainhas negros”, comenta Livia Marques. As próprias história e mitologia africana e afrobrasileira são fonte de relatos incríveis, hoje descritos em diversos livros infantis. E há uma mãozinha da ficção, como o célebre exemplo do Pantera Negra.
Frequentar espaços afirmativos, como coletivos de música, quilombos urbanos, museus e atividades de resgate cultural também ajuda nessa criação de repertório e valorização estética — outro ponto importante aqui. “Não gostar da própria aparência traz prejuízos sérios para a criança, que desenvolve a autoestima com os pais, então o primeiro passo é gostar de você mesmo, se enxergar como uma pessoa negra, para que ela saiba que o padrão estético dela é valorizado em casa”, ensina Livia.
Vale destacar que, se o bebê tem a pele mais clara da mãe, é ela que é mais afetada pela discriminação racial. “O racismo já é sutil, mas na família ele é mais sutil ainda”, aponta Deh. Uma saída para isso é deixar claro desde cedo à família que a criança é negra e que pretende fazer uma criação com consciência racial.
Não existe brincadeira ou fase
Quando o filho repercute uma fala racista, independente da idade dele, não releve. Enquanto ele está “passando por uma fase” ou “fazendo uma brincadeira”, outra criança está sofrendo e pode ter cicatrizes pelo resto da vida. Explique que é errado, que aquele comportamento é inadmissível e reveja se é algo na dinâmica da família que está transmitindo ideias preconceituosas para ele.
A escola do seu filho é inclusiva?
Se os únicos negros da escola são porteiros, faxineiros e cozinheiros, sinal de que a escola pode não se importar muito com a questão da diversidade. Vale verificar se eles realizam atividades sobre o tema, se tem um protocolo de como agir em casos de racismo e como é o padrão estético dos livros e das ilustrações nas paredes.
O que fazer quando a criança é a vítima?
Não é possível saber como a criança vai reagir, não importa o quanto os pais se preparem para esse momento e empoderem o pequeno. “Nós trabalhamos com isso e ainda não sabemos lidar quando somos as vítimas, é uma mistura imobilizante de dor com raiva, muito difícil de descrever”, comenta Deh.
Fique de olho, pois muitas vezes uma criança pequena não conseguirá verbalizar o que aconteceu com ela. Pode ficar mais amuada, quietinha. Essas mudanças de comportamento não podem passar batido, pois os efeitos negativos para o desenvolvimento infantil são graves.
“A criança pode desenvolver transtornos de ansiedade, estresse pós-traumático, isolamento social e muitos outros que impactarão sua vida adulta”, aponta Livia. Se ela verbalizar o que houve, vá a escola, ao local onde ocorreu e não deixe passar batido. Racismo é crime e deve ser denunciado.
Não existe fórmula mágica
Mesmo tomando todo o cuidado, dialogando e agindo contra a discriminação, o racismo não vai sumir do dia para a noite. O tema é dolorido e as conversas não são fáceis, mas precisa ser discutido urgentemente, e as maneiras de inclui-lo no cotidiano vão variar conforme o contexto familiar de cada um.
“Existem mais perguntas do que respostas, mas precisamos dessa reflexão. As crianças são a solução para enfrentar o racismo, mas é com os adultos que mudamos as crianças”, ensina.