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Como acolher a sexualidade das crianças desde cedo

Educar filhos abertos e sem preconceitos exige, muitas vezes, que os pais se esforcem para compreender e observar o mundo com toda sua pluralidade.

Por Vanessa Gomes
28 jun 2022, 11h00

Basta você dizer que está grávida, que lá vem a pergunta: já sabe se é menino ou menina? Todo mundo quer descobrir o sexo, às vezes, para ajudar a determinar o tipo de enxoval, roupinhas, brinquedos. Na maioria das vezes, não paramos para pensar mas, neste momento, em que a criança ainda nem se formou por completo dentro do útero materno, já começamos a colocar sobre ela uma série de expectativas relacionadas a gênero.

Isso quando a família não prepara um chá revelação, que continua em alta, e é um evento inteiro focado em descobrir e divulgar especificamente essa característica do bebê: o sexo. Tudo representado pelo azul e rosa, sendo o azul para meninos e o rosa para meninas. Acontece que há muito mais cores no arco-íris e talvez seja necessário compreender o que está por trás dessas idealizações para criar gerações mais abertas e acolhedoras, menos preconceituosas e generalistas. Para isso acontecer, o trabalho começa por nós, adultos. Pais, mães, tios, avós, professores…

“Não dá para pensar no papel dos pais desvinculando-os da cultura à qual pertencem, nem de suas próprias histórias. Por isso, é preciso que cada um de nós, pais ou não, revisite os próprios pré-conceitos relacionados à sexualidade”, explica a psicóloga Patrícia Grinfeld, idealizadora e sócia-fundadora da Ninguém Cresce Sozinho, plataforma de cuidados em saúde mental, focada em primeira infância e parentalidade. “O preconceito vem de um conceito fechado, sem abertura para a diferença. Nesse sentido, é fundamental que os pais e todos que se ocupam dos cuidados das crianças não se limitem apenas ao que conhecem, acreditam, supõem. É preciso ir além e ser minimamente curioso, interessado no outro. Isso dá um certo trabalho. Às vezes, assusta, já que implica em entrar em contato com o diferente, o desconhecido”, aponta.

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Pois é, ninguém disse que seria fácil, não é?

Todas as cores do arco-íris

Coisa de menino e coisa de menina. Azul e rosa. Carrinho e boneca. Futebol e balé. Por mais que a conversa tenha evoluído, ainda são muito presentes na sociedade e na cultura os estereótipos de gênero, que associam objetos, cores, gostos e preferências a um sexo. Essas questões vêm sendo mais discutidas, mas ainda há um longo caminho pela frente, no sentido de quebrar essas crenças, que são limitantes. “O que está em jogo é o pré-conceito equivocado de que uma determinada cor, um tipo de roupa ou brinquedo define o que se é – e não que é resultado de uma construção social”, diz Patrícia. “Precisamos lembrar que a infância é o tempo do faz de conta, do experimentar ser o que não se é. Se limitamos as cores, as roupas, os brinquedos e as brincadeiras, limitamos as possibilidades de experimentação e, portanto, as possibilidades de a criança fazer escolhas, resolver impasses, encontrar saídas criativas, que são habilidades importantes para a vida, tanto no âmbito individual quanto no coletivo”, afirma.

Esses estereótipos, além de atrapalharem a liberdade das crianças na infância e sua formação para o futuro, nada têm a ver com a orientação sexual, posteriormente. “A construção da sexualidade adulta depende do conjunto de experiências da criança. Não são as preferências da infância, de modo isolado, que definem a orientação sexual”, ressalta a especialista.

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Há ainda muita confusão entre sexo biológico (que corresponde a características físicas que um indivíduo tem ao nascer, como tipo de genitália, cromossomos e composição hormonal), orientação sexual (que tem a ver com a atração emocional, afetiva ou sexual por outras pessoas) e também gênero (vinculado à construção social, ou seja, ao conjunto de papéis, comportamentos e funções que a sociedade espera de alguém, com base em seu sexo). A identidade de gênero diz respeito ao gênero com o qual a pessoa se identifica, independentemente das características físicas.

O mundo tem evoluído e esses temas vêm sendo tratados com mais frequência, o que é uma boa notícia. “O assunto está mais na mídia. As pessoas se familiarizam mais com os discursos que encontram na televisão, nas escolas, etc. Então, começam a trabalhar melhor com a diversidade de gênero”, explica a psicóloga Kika Melhem, coordenadora do Ambulatório Generidades do Instituto de Psicologia da Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo (AGE-IP – FP/USP). Mesmo assim, ainda há muito preconceito e muita ignorância em relação ao tema. Estamos longe de ser uma sociedade que aceita e acolhe as diferenças. Rever a nossa educação e os nossos preconceitos, para, além de aprender, ensinar às crianças que há diferentes formas de ser e de amar – e que todas elas são igualmente válidas – pode ser um começo interessante.

Filho ideal x filho real

Uma das principais consequências dessa confusão toda causada pelos estereótipos de gênero é que muitos pais acham que há algum problema quando a criança quer, por exemplo, vestir uma roupa de uma cor ou modelo que não são os esperados para o sexo biológico dela, como um menino que tem vontade de usar uma saia ou um vestido. “Essa preocupação, em geral, tem a ver com o que os pais esperam dos filhos”, diz a psicóloga Patrícia. “Os pais sonham, imaginam uma vida para os filhos – e isso é importantíssimo. Quando os filhos apresentam algo diferente do que é imaginado, muitas famílias não sabem como lidar com a situação. É preciso fazer um luto do que foi idealizado para que o filho real possa existir como ele é. Por isso, não há outro jeito de lidar com as próprias inquietações e com as expectativas e pressões da sociedade se não pela via de poder falar sobre isso, desconstruir e reconstruir as expectativas em relação aos filhos e a ser mãe ou pai”, pontua.

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Crianças-segurando-arco-iris
(Sky_melody/Getty Images)

Quando a criança começa a perceber a sexualidade?

As crianças começam a observar que há diferenças por volta dos 3 a 5 anos, segundo Patrícia. “Quando perguntam é porque já teceram algumas hipóteses, construídas a partir do próprio repertório, composto por vivências, informações e fantasias”, diz ela. “É a partir dessas perguntas que os adultos devem conversar sobre o assunto, limitando-se às questões trazidas pela criança, respondendo ao que ela questiona, sem grandes explanações”, orienta.

Quando as crianças não perguntam, deve haver um sinal de atenção. Observe seu filho e tente entender se ele não faz isso porque está em um estágio anterior do desenvolvimento psicoafetivo ou porque suas perguntas não são escutadas pelos adultos. Será que falta espaço para ele manifestar sua curiosidade? “No primeiro caso, é importante que a criança passe por uma avaliação psicológica. No segundo, que se abra espaço para as indagações e manifestações dela. Muitas vezes, essas duas situações caminham juntas”, afirma. “O papel mais importante dos adultos é não inibir as investigações da criança. Escutar o que ela já tem como hipótese e corrigir algo que não tenha sido bem compreendido ou esteja equivocado permite que ela construa novas questões e assim vá, gradualmente, construindo o entendimento deste e de outros assuntos”, orienta a especialista.

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Crianças trans: disforia de gênero se manifesta na infância?

Além da idealização ligada ao que a sociedade construiu como estereótipos esperados de cada gênero, há uma preocupação real entre pais de crianças que demonstram não se sentir adequadas dentro do próprio corpo ainda na primeira infância. Será que é fase? Vai passar? Será que meu filho é trans? De acordo com a psicóloga Kika Melhem, embora existam, sim, casos de crianças definidas e compreendidas como transgêneras (ou seja, que manifestam que não se identificam com as características do sexo com o qual nasceram), o melhor é estar atento a ações precipitadas. “É preciso tomar muito cuidado com o diagnóstico precoce”, alerta.

“O filho começa a ter vontade de se maquiar e já acham que ele é homossexual ou trans, querem acelerar o processo, definir as coisas precocemente. O outro extremo, de proibir, fingir que não existe, não falar sobre isso, também é prejudicial”, explica. O ideal, segundo ela, é acompanhar, observar, ouvir, acolher. “Você não pode negar e reprimir, mas também não pode acelerar”, diz ela.

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Para a psicóloga, é importante que os pais busquem, sim, uma orientação, se acharem necessário, mas no sentido de acompanhar e de dar espaço para a criança se manifestar. “Crianças muito novas podem experimentar um discurso de transidentidade, que é quando, por exemplo, uma criança que nasceu menino repete que é menina e que se chama Maria. Isso existe, pode acontecer. Mas não deve ser tratado e percebido pelos pais como identidade que veio para ficar. Não é um discurso fixo e irreversível. É um discurso e ponto. Os pais precisam acompanhar, sem criar um diagnóstico. Com o tempo, pode se tornar algo absoluto ou não. A ideia é entender como uma experimentação. Permita que a criança experimente e acompanhe”, sugere.

De acordo com a especialista, quando é o caso de um indivíduo que realmente precisa transicionar, há várias etapas mais adiante. Além do acompanhamento profissional da saúde mental, de avaliações, há o bloqueio hormonal, feito na adolescência, junto com terapias hormonais e cirurgias. “As intervenções corporais acontecem a partir do bloqueio hormonal. Existem protocolos do Conselho Federal de Medicina para isso”, explica.

A conclusão, depois de todas essas informações? O mais importante é que seu filho se sinta visto, ouvido e acolhido, independentemente de quem ele é ou do que deseja para si. Acompanhe e, se necessário, busque ajuda psicológica, tanto para você como para ele.

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