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Ataques a crianças e jovens: o trauma coletivo e os sentimentos que ficam

Pensar em atitudes imediatas é natural e importante, mas o trabalho de base com saúde mental é primordial

Por Carla Leonardi
7 abr 2023, 10h00

Compaixão, do latim cum passio, significa “sofrer com”. Segundo o dicionário Michaelis, é a “dor que nos causa o mal alheio”, aquele sentimento que experimentamos sempre que o sofrimento do outro nos toca de alguma forma.

“A empatia é o que faz a gente se colocar no lugar do outro. Só que, muitas vezes, eu não consigo resolver ou melhorar a situação dele e vou entrando numa condição de angústia, desespero e desses questionamentos de ‘e se…’, que nos levam para um fator emocional muito negativo. A empatia é fundamental, mas a gente precisa ter habilidades emocionais para lidar com esses cenários”, explica a Julia Trindade, psiquiatra membro da Associação Brasileira de Psiquiatria.

Quando um adolescente ataca alunos e golpeia uma professora, ou quando um homem invade uma escola infantil e atinge crianças, parece que todos morremos um pouco por dentro. Ver uma filha perder a mãe ou pais perderem seus filhos de forma tão violenta e difícil de entender traz uma angústia imediata: poderia ter sido aqui, aquele pai poderia ser eu.

“Situações dolorosas como essas mostram a vulnerabilidade humana frente ao desconhecido e inesperado, geram o desconforto da falta de previsibilidade do agora. São dores intensas diante do luto coletivo”, explica a psicanalista Andrea Ladislau, doutora em Psicanálise Contemporânea.

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É dessa forma que a dor que é pelo outro – que enfrenta um sofrimento do qual, por mais que compartilhemos, jamais teremos a dimensão – é, em alguma medida, por nós também. Porque quando algo assim acontece, sabemos que perdemos todos.

mãe levando filha pela mão à escola
(Arte: Juliana Pereira/ Foto: d3sign/Getty Images)

Ataques cada vez mais comuns no Brasil

Para se ter uma ideia, de acordo com um relatório apresentado pela equipe de transição do Governo Federal, 35 alunos e professores foram assassinados em ataques a colégios no Brasil até 2022 – de 16 atentados, quatro aconteceram no segundo semestre do ano passado. Neste ano, cinco vítimas se somaram a esses dados: a professora da Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, e as quatro crianças do Centro Educacional Infantil (CEI) Cantinho Bom Pastor, em Blumenau (SC).

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Os números fazem referência a um intervalo de 22 anos – antes de 2000, não havia registros de ataques semelhantes. Mas se, no Brasil, atentados coletivos se mostram como algo relativamente recente, os Estados Unidos convivem há décadas com dados alarmantes. Só neste ano, de janeiro a março, foram 131 tiroteios em massa, com 195 mortos e 503 feridos, segundo a organização Gun Violence Archive.

Um problema complexo

Muitos fatores podem ser colocados nessa conta de resultado tão trágico: a disseminação de discursos de ódio e ostentação de práticas violentas – ambas estimuladas nas redes sociais -, legislação online incipiente, desamparo do Estado no que se refere à saúde mental da sociedade e fácil acesso a armas de fogo, sobretudo nos casos de tiroteios dos EUA, além de outras tantas questões.

A situação é complexa, e respostas simplistas se tornam superficiais, embora seja natural que elas apareçam como primeiras reações

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Mas, ao reagirmos, precisamos tomar cuidado para não alimentar ainda mais o ciclo da violência em que vivemos. “Incitar uma reatividade, aquele comportamento em massa, não resolve o problema. Na verdade, a gente o perpetua gerando sempre uma sensação de vingança, estimulando discursos de ódio e segregação”, alerta a psiquiatra.

ilustração de uma cabeça com peça de quebra-cabeça faltando
(wildpixel/Thinkstock/Getty Images)

É preciso ter segurança, sim. Mas é preciso muito mais

Diante de acontecimentos como esses, é legítimo que a preocupação imediata com o que pode ser feito pela segurança dos pequenos venha à tona, mas o trabalho de base não pode ser esquecido; pelo contrário – mostra-se como o fator principal: proporcionar à população condições efetivas e concretas de cuidado com a saúde mental, num exercício que se inicia na infância.

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“Segurança é fundamental. Mas acredito que tudo começa na orientação. A educação precisa ser mais bem pensada na sociedade, assim como os investimentos em saúde mental”, aponta a psicanalista Andrea Ladislau, que chama atenção ainda para a questão da internet em todo esse trabalho. “As redes despejam a cada segundo inúmeros filmes, informações, notícias, documentários, entre outros, com muito conteúdo considerado perigoso, principalmente para indivíduos que já têm uma tendência a desenvolver algum tipo de doença psíquica voltada para comportamentos violentos e sem empatia. Por esse motivo, é preciso ter cautela com o que é divulgado e consumido por crianças e jovens”, alerta.

Lembremos que autores de ataques como os que temos visto com maior frequência nos últimos tempos no país também foram, um dia, crianças. Dessa forma, pensar neles como “monstros” tira a responsabilidade humana e as possibilidades de se evitar que acontecimentos semelhantes aconteçam no futuro. Não apenas são humanos, como são resultado de uma série de fatores sociais, culturais, econômicos e outros – contexto no qual a saúde mental poderia (e deveria) ser trabalhada.

“O que estamos presenciando é uma catástrofe generalizada”

Andrea Ladislau, doutora em Psicanálise Contemporânea.
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“A saúde mental precisa ser mais valorizada para ajudar a controlar e a gerenciar emoções e sentimentos em desajuste, principalmente porque nem todos possuem maturidade, equilíbrio e desenvolvimento maturado a ponto de compreender ou mesmo de discernir o que é real do que é ficção”, destaca Andrea.

É importante ressaltar que não se trata, de forma alguma, de minorar a responsabilidade dos crimes, mas de encontrar caminhos possíveis para evitar que se repitam no futuro.

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