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Maternatípica

Poliana é mestranda em comportamento infantil, autora do instablog @meubebeeoautismo e mãe atípica de Soph e João.
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As mulheres autistas têm a deficiência apagada de sua história

Misoginia, sintomas mascarados e invisibilidade: fatores sociais dificultam que mulheres e meninas no espectro possam ser enxergadas.

Por Poliana Martins
2 abr 2022, 14h00

Dia 2 de Abril é o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, um transtorno do desenvolvimento de base genética que acomete 1 a cada 44 pessoas no mundo. Isso significa que ou você conhece alguém com Autismo ou a autista é você. Brincadeiras à parte, não é incomum que muitas pessoas se descubram autistas na vida adulta.

Isso acontece porque havia um grande desconhecimento a respeito da condição há 30 anos, o que fazia com que pessoas autistas fossem rotuladas sob diferentes olhares: excêntrica, introspectiva, deprimida, sistemática, aborrecida, grosseira e passassem a vida inteira sem um diagnóstico formal e sem os suportes adequados. Ainda mais quando a pessoa em questão é uma mulher.

Se olharmos pra nossa infância e adolescência com atenção, provavelmente encontraremos memórias daquele colega mais calado, que conversava com poucas pessoas, brilhante em matemática ou física, mas péssimo no futebol. Talvez esse seja o estereótipo masculino que mais se aproxime das nossas lembranças com o autismo, mas a verdade é que é um espectro enorme em que cabem pessoas com as mais variáveis características: calado ou falador, sério ou sorridente, bom de bola ou perna de pau.

Não é isso que define o que é ser autista, mas sim a presença de dificuldades de comunicação e interação social e de comportamentos mais inflexíveis e repetitivos. Mas, curiosamente, nas mulheres o autismo não se apresenta da forma estereotipada que vemos nos homens.

Misoginia, sintomas mascarados e invisibilidade

Pouco se sabe e se escreveu sobre autismo em mulheres e uma das razões é que o conceito médico de autismo foi definido a partir de amostras masculinas, revelando mais uma vez como a ciência e saúde pública podem atender a padrões misóginos que desconsideram toda a existência de um subgrupo. A partir daí surgiram alguns dados que hoje já sabemos ultrapassados, como o que afirma que o autismo é 4 vezes mais comum em homens.

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“O autismo em mulheres tem características distintas do autismo em homens e ainda mais invisibilizadas e descredibilizadas”.

Sabemos hoje que as características do autismo se apresentam de maneira distinta em meninas e mulheres, sendo comum haver autistas mulheres com boa capacidade de fala e até moderadamente fluente em relações sociais, mas com problemas na leitura da comunicação não verbal, como perceber um flerte ou entender piadas com uma dose de ironia. Diferenças que podem não ser vistas num primeiro contato ou serem percebidas em relações superficiais.

As mulheres autistas, por socialização ou genética, apresentam boa capacidade de imitar o comportamento de seus pares, apresentam maior adaptabilidade, são um tanto mais sociáveis e capazes de mascarar sintomas, ou seja, parecerem neurotípicas. Essas habilidades podem até parecer “positivas” a primeira vista, pois é como se elas conseguissem esconder parte de sua deficiência.

Mas não é porque não conseguimos ver que uma dor não existe. Infelizmente não é incomum que alguém tire a própria vida sem dar sinais de que teria uma atitude tão extrema, assim como podemos virar a noite rindo entre amigos após um término muito doloroso. Passar a vida fingindo ser o que não é ou usando sua energia para desempenhar papéis esperados tem um preço muito alto conhecido por sintomas internalizantes.

Significa dizer que é comum que mulheres adultas autistas, antes de se descobrirem com TEA, recebam outros diagnósticos como transtorno generalizado de ansiedade, depressão, síndrome do pânico, transtorno de personalidade boderline, etc. Percebam que alguns destes diagnósticos são mera consequência de estarmos diante de uma pessoa com deficiência que perdeu sua saúde mental ao tentar se adaptar às exigências sociais, sem nenhum suporte.

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Neurotipicidade compulsória e a pressão social para se encaixar no padrão

Um fenômeno curioso que ocorre no autismo é parecido com a heterossexualidade compulsória: assim como todos nós somos considerados heterossexuais por nossa família, escola e amigos desde o nascimento, também somos considerados neurotípicos desde que nascemos. O desconhecimento a respeito da neurodiversidade e quais seriam os sintomas e características que apontariam para o autismo em uma criança/adolescente, especialmente se mulher faz também com que todas nós cresçamos achando que fazemos parte de um grupo majoritário de pessoas chamadas típicas.

A neurotipicidade compulsória impede que as pessoas se reconheçam enquanto atípicas, mesmo quando têm acesso a um conjunto de informações que descrevem o autismo. Esse fenômeno é muito curioso, pois é resultado de uma pressão social absurda ao longo da vida do indivíduo para se encaixar num padrão de comportamento definido como “normal”. Como se a normalidade de fato existisse.

Certo é que o “normal” é construído socialmente para que possamos controlar o comportamento das pessoas a partir de medidas estabelecidas. E enquanto mulheres isso nos atinge de formas muito mais profundas que aos demais. Somos vulneráveis quando estamos dentro daquilo que chamamos de “normal” e mais vulneráveis ainda quando não estamos. As mulheres autistas têm sua deficiência apagada de sua história, assim como Frida Khalo. Acontece que a deficiência não é apenas uma característica, mas uma forma de se relacionar com o mundo pela qual as pessoas enxergam e são vistas.

“O autismo é tudo que eu sou, e eu sou tudo que o autismo é”, disse uma menina autista. Não há como falar de autismo em mulheres sem parar para ouvir a essas mulheres. Por isso, neste dia 2 de abril proponho que a gente olhe para o autismo a partir delas, que têm muito a nos ensinar, mas – sobretudo – merecem ser ouvidas. Pra quem quiser conhecer, indico os instablogs de @ana.telier, @caradeautista, @amaedostrigemeos e @viagematipica.

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