Herança materna: as doenças transmitidas de mãe para filho

Há doenças genéticas, crônicas e infecciosas que podem ser transmitidas para o bebê. Saiba quais são, como preveni-las ou minimizar suas complicações.

Por Cida de Oliveira (colaboradora)
Atualizado em 28 out 2016, 03h27 - Publicado em 8 jun 2015, 09h41
Dmitrii Kotin/Thinkstock/Getty Images
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Logo que o tão aguardado bebê nasce, as famílias começam a puxar brasa para a sua sardinha. “Parece mais com o pai”; “tem a carinha da mãe”. Na verdade, mesmo que as características guardem mais semelhança com um lado do que com outro, essa fofura nada mais é do que o resultado de uma combinação única dos genes dos pais transmitidos em quantidades exatamente iguais. Afinal, na fecundação 23 cromossomos do espermatozoide do pai unem-se a 23 cromossomos do óvulo da mãe, gerando uma célula humana completa, com 46 cromossomos. É a união dos dois grupos que define as características do novo indivíduo, como sexo, estatura, cor da pele, dos olhos e dos cabelos.

É essa complexa relação que explica também como diversas doenças, das mais conhecidas às mais raras, passam de pais para filhos – e de mães para filhos. Só que para entender melhor como isso acontece, nada como uma leve noção dos mecanismos de herança. “Os problemas genéticos geralmente são causados por alterações nos cromossomos; em um gene específico ou pela influência de fatores ambientais sobre vários deles”, explica a pediatra Chong Ae Kim, chefe da Unidade de Genética do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo. Como ela destaca, a transmissão por gene defeituoso é a que envolve maior complexidade: existe a chamada herança autossômica dominante, na qual basta a presença de um gene dominante alterado, que pode vir do pai ou da mãe, para elevar a 50% as chances de aparecimento da doença no filho ou na filha.

A herança autossômica recessiva permite que pai e mãe normais, sem apresentar sintomas, transfiram o mesmo gene com defeito para o filho ou filha, que têm 25% de risco de herdar a doença. E na herança associada ao cromossomo X, como o nome já diz, é nele que mora a encrenca. “Nesse modelo, em geral a mãe é normal e não apresenta a doença, mas carrega um gene defeituoso e tem 50% de risco de ter um filho ou uma filha com o problema. Só meninos, porém, que carregam apenas um cromossomo X, vão manifestar a enfermidade. Na menina, que tem XX, um deles compensa o X defeituoso”, detalha a pediatra.

Em resumo, “é por isso que a mãe pode transmitir doenças que carrega por herança dominante ou por meio de alterações no cromossomo X”, diz o pediatra e geneticista Marco Antônio de Paula Ramos, do Centro de Genética Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Também é possível a transmissão de doenças recessivas, como completa a geneticista Dafne Horovitz, coordenadora clínica do Departamento de Genética Médica do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), do Rio de Janeiro. “Mas isso só acontece quando a pane genética também acomete o pai”, diz, lembrando que há ainda outros padrões com mecanismos bem mais complexos.

Exclusividade de mãe

Embora ela não esteja sozinha na transmissão de genes defeituosos, há casos em que as peculiaridades de seus cromossomos são determinantes para levar certas doenças aos seus filhos – a tal herança associada ao cromossomo X. Ela explica o surgimento de algumas enfermidades:  
 
Hemofilia – Distúrbio da coagulação do sangue caracterizado por hemorragias constantes em órgãos internos, nas mucosas e em várias regiões do corpo. O problema, que acomete apenas os meninos, é tratado com reposição, pela veia, de fatores de coagulação e requer cuidados constantes. Segundo especialistas, não é possível prevenir a transmissão, o diagnóstico envolve métodos complexos e não há profilaxia para o recém-nascido, que deverá ser acompanhado permanentemente. O Brasil tem cerca de 9.000 hemofílicos, conforme a Associação dos Hemofílicos do Rio de Janeiro.
 
Distrofia muscular de Duchenne – doença degenerativa que afeta progressivamente a musculatura esquelética, começa a ser percebida a partir dos 3 anos de vida. É quando a criança passa a cair com frequência até parar de andar, por volta dos 15 anos. O acompanhamento é feito por neurologista, cardiologista e fisioterapeuta. Segundo a Associação Brasileira de Distrofia Muscular, de cada 2.000 nascidos vivos, um é portador de algum tipo de distrofia. Os especialistas recomendam o aconselhamento genético antes da gravidez quando já houver casos na família.

De pai e mãe

Alguns distúrbios podem aparecer quando ambos têm alteração no gene determinante mas nem por isso manifestam os sintomas:

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Fibrose cística – mais comum na etnia branca, causa o espessamento da secreção pulmonar, facilitando a contaminação por bactérias que afetam os brônquios. Com o passar do tempo, a capacidade respiratória é reduzida e, em casos mais graves, há necessidade de transplante. O pâncreas também pode ser prejudicado. Alguns dos recém-nascidos com o problema têm obstrução intestinal e precisam ser operados logo após o parto. Em geral, os pais não apresentam os sintomas e só descobrem ser portadores depois do nascimento do filho. Sem o teste do pezinho para a doença, com o diagnóstico tardio na infância, na juventude ou na idade adulta, é grande o risco de comprometimento dos órgãos, em especial do pulmão.

Fenilcetonúria – uma das doenças identificadas pelo teste do pezinho, caracteriza-se pela falta de uma enzima responsável pelo metabolismo de um aminoácido chamado fenilalanina, presente nas proteínas de muitos alimentos. O acúmulo dessa substância no organismo leva a retardo mental e do desenvolvimento motor, além de convulsões. Quando diagnosticada precocemente, logo após o nascimento, o acompanhamento é rigoroso, com dieta especial, que permite uma vida normal e evita os problemas de desenvolvimento.

Anemia falciforme – muito confundida com a anemia devido à carência de ferro, a falciforme deriva de um defeito nos glóbulos vermelhos, que levam oxigênio e nutrientes às células. Causam muitas dores e permitem a instalação de sérias infecções. O teste do pezinho pode identificar o problema, permitindo a detecção precoce e o controle da doença. Geralmente os pais não manifestam a doença porque carregam apenas uma cópia do gene defeituoso. O problema é mais comum na população negra. A presença do problema na família amplia as chances de novos casos.

Problemas crônicos

Mais comuns na população em geral, câncer, pressão alta, alterações no colesterol, diabetes e distúrbios psiquiátricos, entre outros, não podem ser facilmente atribuídos à herança materna ou paterna. Isso porque pertencem à classe em que os especialistas chamam de transmissão multifatorial. “Os modelos de herança são variados e agravados por fatores ambientais”, diz o geneticista Marco Antonio de Paula Ramos, da Unifesp. “Para situações específicas, em que há câncer na família, alguns laboratórios disponibilizam métodos capazes de identificar algumas mutações genéticas que aumentam o risco para a doença”. Como é impossível impedir a interferência desses fatores genéticos e ambientais, ele recomenda o acompanhamento médico especializado. Afinal, só assim é possível detectar precocemente sinais passíveis de tratamento, controle ou cura.

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Doenças infecciosas

Além dos intrincados mecanismos genéticos, há a possibilidade de transmissão de infecções da mãe para o feto através da placenta. “Vírus, bactérias, protozoários, autoanticorpos, drogas, medicamentos e hormônios são capazes de atravessar a barreira placentária e contaminar o feto”, afirma a ginecologista e obstetra Joelma Queiroz, da Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas de São Paulo. E conforme ela destaca, são doenças bastante conhecidas, antigas até, relativamente fáceis de prevenir e tratar, mas que trazem graves riscos ao bebê.

Rubéola – se for contraída pela gestante nos três primeiros meses da gravidez, o feto corre grande perigo. As chances de malformações que podem causar surdez, retardo do crescimento intrauterino, problemas cardíacos e oculares são de 50% no primeiro mês e 30% no segundo. Também são grandes os riscos de aborto e parto prematuro. “A principal ação preventiva é a vacinação, que está incluída no calendário vacinal de todas as crianças. A primeira dose deve ser dada aos 12 meses, com reforço entre 4 e 6 anos de vida.”, explica Joelma. Se a grávida nunca teve a doença deve evitar o contato com pessoas infectadas. E se a contraiu, deve fazer exames para identificar a presença do vírus. Em caso positivo, deve ser acompanhada de maneira mais rigorosa pelo médico.

Sífilis – causada por bactérias, essa antiga doença, de transmissão sexual, é mais séria quando a grávida está contaminada. Estão associadas à infecção malformações fetais como surdez, hidrocefalia, anomalias dentárias e ósseas, sem contar o grande risco de  parto prematuro ou até de abortamento. Estatísticas mostram que 40% dos fetos contaminados morrem ainda no útero. Segundo o Setor de Doenças Sexualmente Transmissíveis da Universidade Federal Fluminense, 4% das gestantes, de todas as classes sociais, está infectada. E em 40% dos casos há grandes danos à saúde do recém-nascido, que pode levá-lo à morte.  Conforme Joelma, todo acompanhamento pré-natal inclui exames para detectar a doença logo no início da gestação e no terceiro trimestre. A duração do tratamento, à base de penicilina, varia de caso para caso.

Toxoplasmose – o contágio acontece por meio da ingestão de carne mal cozida, ovos crus e leite sem pasteurização contaminados com um parasita presente nas fezes de gatos. As chances de infectar o bebê são de 40%. A infecção, em muitos casos, pode acarretar problemas cardíacos, cerebrais, visuais, hepáticos e no desenvolvimento fetal. Em longo prazo, o bebê afetado pode ter retardo mental, surdez e cegueira. Exames durante a gravidez podem detectar a presença do parasita e orientar o tratamento. Uma forma de prevenir é comer carnes bem cozidas e lavar muito bem os alimentos.

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HIV – se a mãe for portadora do vírus da Aids, as chances de infectar o bebê são de 25%. Porém, segundo o Ministério da Saúde, o risco cai para 1% com o uso dos medicamentos antiretrovirais indicados e acompanhamento médico. Entre 2008 e 2009 pelo menos seis mil brasileiras portadoras do HIV engravidaram. Na última década, houve redução de 44,4% nesse tipo de transmissão do vírus. O contágio pode acontecer por meio da amamentação.
 
Lúpus – a passagem de auto-anticorpos positivos – o anti Ro e anti La – pela placenta pode provocar alterações no coração ou na pele do feto. “Isso não significa que ele terá a doença. Assim como as lesões de pele vão sumir, esses anticorpos desaparecerão da circulação do bebê porque são da mãe. Mas as lesões cardíacas são definitivas”, ressalta Joelma. Segundo ela, filhos de mães lúpicas não terão necessariamente a doença autoimune, mas há chances consideráveis de que isso aconteça na vida adulta.
 
Coordenadora do Serviço de Obstetrícia e Emergência do Hospital Fêmina, de Porto Alegre, a ginecologista Denise Canali chama a atenção para problemas que podem ser transmitidos no parto normal. “Durante a passagem do bebê pelo canal, ele pode ser contaminado por vírus do HPV, da hepatite e da herpes”, afirma.

HPV – a infecção pelo Papilomavírus humano já foi comprovada por diversos estudos da Fiocruz e da Universidade Federal Fluminense. Ao analisarem necrópsias, os pesquisadores perceberam a presença de papilomas genitais congênitos associados ao vírus, sendo que em metade dos havia malformações, como defeitos renais e na parede abdominal, bem na inserção do cordão umbilical, além de lábio leporino.

Hepatite B – o vírus da hepatite B, que pode causar inflamação crônica do fígado e favorecer partos prematuros, pode ser adquirido durante o nascimento do bebê. A sorologia é importante para detecção das portadoras do vírus na gestação. Os recém-nascidos receberão vacina contra hepatite B e imunoglobulina logo após o parto.

Herpes – o vírus chega a afetar 1 em cada 3.000 recém-nascidos. Na maioria dos casos, a infecção afeta pele, olhos e boca. Se não for tratada adequadamente na primeira semana, o quadro se agrava, podendo comprometer o cérebro, os músculos, fígado e o sangue, além de prejudicar a respiração, o que aumenta o risco de morte. Estima-se que em 30% dos casos haja lesão cerebral, identificada somente quando a criança passa dos dois anos de idade. Antivirais aplicados na veia reduzem em 50% a mortalidade.

A boa notícia é que a maioria dos casos pode ser prevenida e controlada com medidas simples, como a realização do pré-natal.

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