“Por que as pessoas se incomodam com meu filho usando vestido”
Conheça a história de Chico, um menino de 6 anos que gosta de usar vestidos e, só por isso, despertou o ódio de tantas pessoas na Internet.
Proteger os filhos, “mas nunca deles mesmos e das suas verdades”. É por defender essa ideia que Carol Patrocinio acredita que o fato de Chico, seu filho mais novo, querer usar vestidos deve ser tão respeitado quanto o desejo do mais velho de só usar camisas de futebol. O problema é que isso nem sempre acontece – especialmente nas redes sociais. Sentindo-se “protegidos” pelo mundo online, usuários chegaram a ofender o papel de Carol como mãe, bem como o seu pequeno. Aqui, ela relata como enfrentou esse episódio de hostilidade – muitas vezes partindo de outras mães – e fala sobre a importância dos pais conhecerem os próprios filhos.
“‘Mamãe, eu quero um vestido’. Essa foi uma das frases que ouvi de Chico, meu filho mais novo, quando ele tinha 5 anos. Chico é um menino. Chico não é uma criança transgênero. Ele é apenas um menino que queria usar um vestido. A primeira reação que tive foi a que talvez a maior parte das pessoas teria: tive medo.
Tive medo porque ele poderia ser hostilizado. Talvez ele perdesse alguns amigos. Era um mundo novo se abrindo aos meus olhos e eu tinha medo de dar o primeiro passo. Mas depois de respirar fundo, consegui olhar para trás: ele sempre gostou de brincar de bonecas e a cada brincadeira de fantasia na escola ele escolhia novos vestidos de princesa. Um vestido próprio não seria tanta novidade.
Aqui em casa meu companheiro e eu temos uma regra absoluta: respeitar nossos filhos e suas particularidades. Se nosso filho mais velho ama futebol ao ponto de querer usar camisas de time o tempo todo, a gente deixa. Quando o nosso filho mais novo pediu o vestido, por que deveríamos agir diferente?
Talvez seja um bom momento para explicar algumas coisas: além de mãe sou jornalista, além de jornalista sou uma curiosa inveterada que tenta entender tudo e todos ao redor. Eu não preciso ser como as outras pessoas, apenas gosto de trabalhar meu íntimo para que eu consiga respeitar todas elas. Gênero é um desses assuntos que me encanta, então na minha cabeça, do meu companheiro e dos meus filhos há algo muito claro: roupas e brinquedos não têm gênero, eles não têm ligação nenhuma com orientação sexual ou com identidade de gênero. Roupas e brinquedos são apenas o que os nomes dizem, nada além disso.
Do primeiro vestido pra cá, Chico aumentou o número de peças na coleção. Eles normalmente são coloridos e rodados – o mais importante para ele é que o vestido “rode” enquanto ele gira. Ele teve de lidar com a curiosidade dos amigos da escola, é claro, mas tudo sempre aconteceu com a leveza das crianças – um ou outro caso foram levados aos pais das crianças que insistiam nas regras coisa de menino versus coisa de menina e tudo se resolveu quando os pais conversaram em casa sobre respeito e amizade.
Tudo ia bem até o mês de janeiro. Chico foi a uma festa comigo e o irmão – era lançamento de um centro de acolhimento para pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros) expulsos de casa pela família, a Casa 1. De acordo com Chico era um lugar para ‘pessoas que são expulsas de casa porque gostam de usar maquiagem’ – o que não deixa de ser verdade – e nós resolvemos ir porque é importante que meus filhos entendam que nem todo mundo é respeitado por ser quem é. Para esse evento, Chico escolheu um vestido que ganhou de uma amiga minha: cheio de borboletas. Ele me viu passando batom e quis passar também. Nada demais ali: apenas uma criança descobrindo o mundo ao seu redor. Tiramos uma foto, postei no Facebook e fui dormir.
Na manhã seguinte, tomei um susto ao pegar o celular e ver o número de notificações na tela. Algo tinha acontecido, mas eu não conseguia lembrar de nada que pudesse causar tanta comoção. Quando entrei na rede social descobri que era a foto do Chico. As pessoas estavam ofendidas, incomodadas, inconformadas, agredindo a mim e a ele sem pensar duas vezes.
As mensagens ali me inspiraram a escrever um texto explicando quem é o Chico e sua relação com o vestido e me deixaram por dias chocada com a intolerância das pessoas. Em nome de proteger uma criança de uma mãe negligente – sim, isso foi dito – as pessoas divulgaram a foto do meu filho, uma criança de 6 anos, com frases impublicáveis. Houve desejo de que ele sofresse bullying, houve culpabilização caso ele fosse agredido, houve ódio e falta de compreensão. E o mais triste é que a primeira pessoa a compartilhar a foto foi uma mãe.
A gente está tão acostumada a apontar o dedo para as outras mães, não é? É quase um mecanismo de defesa: a gente se sente tão encurralada que aponta outra pessoa para tomar esse lugar. Não seria mais fácil se a gente aceitasse que estamos todas (ok, quase todas, já que não podemos fazer de conta que não existem mães realmente negligentes e abusivas) tentando criar seres humanos bons e felizes? Cada mãe tem seu caminho, cada mãe tem seus limites e cada uma escolhe como seguir. Se nossos filhos estão saudáveis, são respeitados, amados, são felizes e não violentam ninguém, qual o problema?
Otimista que sou, todo esse episódio teve um ponto incrível: o número de mães que vieram me procurar e pedir ajuda ou agradecer por ajudá-las a entenderem melhor os filhos. Muitas cuidadoras, avós, tias e professoras também agradeceram e pediram dicas. Criou-se uma rede de apoio: mulheres que recebem olhares e apontamentos simplesmente porque seus filhos, meninos saudáveis e inteligentes, querem explorar o mundo de uma maneira diferente daquela imposta pela sociedade.
A dica que mais tenho desde aquele dia é: permita-se conhecer a criança. Como se fosse um novo amigo, uma nova paixão, uma nova pessoa que faz seu coração bater mais forte. Deixe que essa criança fale sobre ela, descubra quem ela é, te mostre caminhos que você nunca imaginou. Cada criança é um indivíduo e as crianças são o grupo de indivíduos mais vulneráveis na nossa sociedade. Elas precisam ser protegidas, mas nunca delas mesmas e das suas verdades. Elas precisam ser guiadas com amor e compreensão. Elas precisam sentir que sempre terão um lugar seguro para onde correr caso tudo dê errado.
Eu olho para os meus filhos com os mesmos olhos curiosos que olho para o mundo e todos os dias aprendo algo novo sobre eles e sobre mim. A gente pode aprender muito com as crianças, precisamos apenas deixar de lado a ideia de que sabemos mais porque somos adultos. No fundo estamos todos aprendendo”.