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“Minha mulher engravidou de gêmeos e amamentamos juntas”

Conheça a experiência de Marcela e Melanie com a maternidade homoafetiva, uma inspiradora história de amor que já virou até livro.

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 30 jun 2020, 17h08 - Publicado em 1 jan 2020, 10h32

A gestora cultural Marcela Tiboni, 37 anos, e sua esposa, a produtora Melanie Graille, 30 anos, realizaram recentemente o sonho de ter filhos com a fertilização in vitro. Os gêmeos Bernardo e Iolanda nasceram em 2018, e ambas amamentam as crianças.

Sem muitos referenciais oficiais sobre a maternidade lésbica, as duas foram abrindo caminho por conta própria, e hoje são referência para outras mulheres. Leia o relato de Marcela na íntegra.

O começo rápido e a vontade de ser mãe

“Eu e a Mel nos conhecemos em 2013, em uma pós-graduação. No início, a achei meio blasé, e ela me achou um pouco chata. Demoramos um pouco para começar a conversar, mas, quando descobri que ela também namorava mulheres, passei a achá-la mais interessante. Dois meses depois, começamos a ficar juntas e foi tudo muito rápido, em poucos meses já estávamos morando juntas.

Desde cedo já conversávamos sobre ter filhos, nós duas pensávamos engravidar. Em 2017, a conversa ficou mais oficial, a Mel falou que queria muito ter a experiência da gravidez e decidimos que seria ela, mas não sabíamos muito o que fazer.

Procuramos muito livros e informações na internet sobre maternidade homoafetiva, e não encontramos nada além de blogs com relatos curtos. Aí decidimos perguntar no Facebook. Anunciamos que desejávamos engravidar e em pouco tempo o post tinha mais de 600 likes e 400 comentários. Virou um evento.

O processo de fertilização

Optamos por fazer a fertilização in vitro, com sêmen doado. Nosso primeiro passo foi escolher uma clínica social em São Paulo. Eu tinha uma ‘nóia’ de como a clínica acolheria duas mulheres, se seríamos bem recebidas. Na primeira consulta, a sala de espera cheia, a Mel estava na recepção e me chamou.

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Quando cheguei no balcão, a recepcionista perguntou se eu era a mãe, porque precisaria do documento das duas mães. Me senti muito bem recebida, e vi que eles já tinham experiência com casais homoafetivos.

No consultório, a médica perguntou se desejávamos ser doadora de óvulos. Pensei, se vamos usar o sêmen de um homem, por que não ajudar uma mulher que quer ter um filho também? Não sabemos quem foi nosso doador, nem se ele está vivo, tudo ocorre de maneira sigilosa.

Começamos o processo em março, mas é um pouco demorado pois é preciso encontrar uma receptora para o óvulo doado antes de realizarmos a nossa própria transferência de embriões, para a Mel, que ocorreu em janeiro. Consideramos usar os meus óvulos, o chamado método ropa, porque antes para registrar uma criança em dupla maternidade, o estado só aceitava se houvesse material genético das duas mães.

Isso já mudou, então optamos por usar os óvulos dela mesmo. Eles são meus filhos, não importa o DNA. Conversei com minha família, se encarariam a criança como neto e sobrinho, e eles aceitaram desde o começo. Hoje curtem muito as crianças.

A gravidez e uma surpresa

Fomos informadas desde o princípio que a chance da fertilização dar certo era muito baixa, mas isso é porque as estatísticas consideram apenas casais heterossexuais, com dificuldade de engravidar. Só que, para nós, o único problema era a falta de sêmen. Tanto que engravidamos de primeira e descobrimos que eram gêmeos.

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Foi muito curioso, porque já me sentia mãe. Eu falava que a gente estava grávida, era um jeito de me inserir na maternidade. No movimento LGBT, conversamos muito sobre como a mãe não-gestante acaba sendo invisibilizada. Tem uma mulher ali do lado que está grávida, então essa outra serve para quê? Eu não permiti que isso acontecesse.

O processo da gravidez foi recheado de ansiedade, olhar de longe as mudanças que a Mel passava, mas, ao mesmo tempo, teve muita parceria, pois tinha uma ideia das sensações que ela estava sentindo, já que nossos corpos são parecidos.

Amamentação e puerpério compartilhado

Procuramos uma consultora de amamentação para que eu pudesse amamentar também. Nossa ginecologista ajudou muito, começamos a preparar meu corpo, e entendo isso como uma validação da maternidade também. A Mel ficava com a barriga, e eu com a bomba de extração.

Do quinto ao sétimo mês, tomei anticoncepcional como parte do tratamento e minha menstruação foi interrompida. O curioso foi que ela só voltou depois do puerpério. O Bernardo e a Iolanda nasceram de parto cesárea em outubro desse ano. Nos deixaram a sós na sala de parto, amamentamos por horas.

Quando fomos para casa, vivemos o puerpério juntas. Tivemos baby blues, variações de humor que iam de rir muito a chorar de soluçar. A Mel diz que foi bom viver isso ao lado de outra mulher, porque havia uma compreensão real do que ela estava vivendo.

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Não paramos para a licença maternidade, pois somos autônomas e não contribuímos para o INSS. Chegamos a fazer reunião quando eles tinham 28 dias e trocar fralda no meio da sala. Sempre trabalhamos em locais baby friendly, então não foi um problema.

Compartilhar para inspirar

Quando a Mel estava grávida de três meses, comecei a escrever um livro (Mama: um relato da maternidade homoafetiva, publicado pela Editora Dita este ano). Brinco que foi minha gestação. Escolhemos viver a experiência de maneira aberta. Sempre ouvimos muitas questões sobre a dupla maternidade, então fiz um Instagram com a ideia de acolher outras famílias.

Ajudamos as pessoas, mas é um processo de troca, criamos uma rede de apoio muito forte. Acho que falta informação sobre o assunto, pesquisas científicas sobre a fertilização em casais de mulheres, e várias outros pontos. Por exemplo, ouvi desde o começo que a Melanie seria mais mãe, por conta do gosto do leite, ligação genética, mas agora posso dizer com certeza que isso não é verdade.

Pretendo escrever um segundo livro e trazer os relatos de outras mulheres, pois a maternidade homoafetiva é muito plural. Tem mulher que faz inseminação caseira, não consegue registrar, mães que querem ser chamada de pai, diversas situações.

(Reprodução/Instagram)

Preconceitos e a “figura paterna”

Não sou ingênua. Sou branca, de classe média, moro na Pompeia. Sei que se fosse negra seria diferente. Mesmo para os homens gays, a experiência é outra. Talvez no nosso caso o preconceito seja mais velado. As pessoas perguntam quem faz o papel do pai de prover para a casa, quem vai matar a barata, quem vira o galão de água…

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Procuramos sempre agir com naturalidade. Percebo que às vezes somos resistentes demais ao outro. Esses dias estava no mercado com eles, uma senhora com mais de 80 anos perguntou quantos anos eles tinham e como tinha sido a gravidez. Fiquei pensando mil vezes, mas decidi falar: ‘quem engravidou foi a minha mulher’.

Achei que ela fosse infartar, mas ela respondeu que o importante era ter dois para cuidar, sendo dois pais, duas mães, não importa. Mandou um beijinho para as crianças e foi embora.

Na internet a história é outra

O que nos pega mais é a coisa cristã, de que vamos para o inferno, de que é errado. Na internet as pessoas falam coisas do tipo, mas a resposta das pessoas é grande, uma contracorrente. Teve uma vez que entraram no perfil da Mel e mandaram uma foto do Bernardo escrito ‘seu viadinho’.

Ela quis deletar o perfil, mas conversamos sobre como provavelmente ouviremos isso a vida inteira, e precisamos treiná-los para lidar com isso. Já lemos coisas como ‘coitada as crianças quando entenderem que tem duas mães e nenhum pai’. Penso que pode ser que eles precisem fazer terapia, pode ser que não. Eu topo viver a experiência com eles, e respondo os comentários um a um, mesmo os preconceituosos.

Ser mãe de gêmeos é uma experiência intensa e cansativa, temos o processo de entrar em sintonia, ter duas referências de maternidade diferentes, ela amamenta em livre demanda, eu quero diminuir. Vamos aprendendo juntas, e amamos tanto que já estamos pensando no terceiro filho.”

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https://www.instagram.com/p/B4W5o-AnzdJ/

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