Entenda por que venda do livro infantil ‘Abecê da Liberdade’ foi suspensa
Reimpressa pela Companhia das Letrinhas, a obra infantil traz a dúbia interpretação de que o transporte de crianças em navios negreiros seria divertido.

A literatura é uma aliada poderosa para explicar aos pequenos assuntos complexos, como o racismo. Entretanto, é preciso atenção na escolha do livro, para entender se ele está tratando a temática da maneira correta ou não. Este é o caso da obra “Abecê da Liberdade: a história de Luís Gama”, que foi recolhida pela Companhia das Letrinhas por romantizar a vivência das crianças dentro do sistema escravocrata.
O anúncio foi feito pela própria editora, em nota oficial publicada no Instagram. Originalmente, o livro era comercializado pela Objetiva, com novos lotes reimpressos pela Companhia. Só que, diante da mudança, não houve um monitoramento da empresa para revisar o conteúdo da obra antes de liberá-la para venda.
“Assumimos nossa falha no processo de reimpressão do livro, que foi feito automaticamente e sem uma releitura interna, e estamos em conversa com os autores para a necessária e ampla revisão. De toda maneira, como consideramos a crítica correta e oportuna, imediatamente disparamos o processo de recolhimento dos livros do mercado e interrompemos o fornecimento de nosso estoque atual. Esta edição agora está fora do mercado e não voltará a ser comercializada”, informou a nota oficial.
Por que o livro é considerado racista
Ainda que, inicialmente, o intuito da obra seja trazer luz para a vida do ativista abolicionista Luis Gama, o tom da história acabou atravessando os leitores de outra forma. O enredo, que usa um tom irônico, soa como romantização de um marco que deixa seus resquícios até hoje, a escravidão.
No trecho que está circulando nas redes sociais, a crítica acontece pelo tom divertido ao mostrar crianças negras brincando enquanto são transportadas em navios negreiros: “A viagem pelo mar foi tranquila. Não houve nenhuma tempestade, e o navio quase não balançou. Eu, a Getulinha e as outras crianças estávamos tristes no começo, mas depois fomos conversando, daí passamos a brincar de pega-pega, esconde-esconde, escravos de Jó (o que é bem engraçado, porque nós éramos escravos de verdade), e até pulamos corda, ou melhor, corrente”.
Nos últimos dois parágrafos da mesma página, mais um trecho que, apesar de conter um subtexto compreendido por adultos, confunde a criança leitora: “Nem parecia que íamos ser comprados por pessoas brancas e trabalhar de graça para elas até a morte. Mas podia ser a nossa última chance de brincar. Então nós brincamos”, continua a obra.
Em entrevista ao UOL, José Roberto Torero, um dos autores do livro, defendeu-se explicando que a história inspirada em Luiz Gama é um romance histórico para crianças e que a ironia presente nas frases é uma forma que o ser humano encontra para lidar com a dor. Nos comentários da nota em que foi trazida a resposta de Torero, o público continua a não concordar com as justificativas e enfatiza que um pedido de desculpa sobre o erro seria o correto.
“Realmente lamentável o posicionamento de um dos autores. Sugerir a ironia para fazer sorrir a partir das dores de outres é de mau gosto e cretino, pra dizer o mínimo (ou deixando bastante evidente a perspectiva racista que está presente no enredo)”, diz um dos comentários. Outros também opinaram que ainda que o livro seja recolhido, outros pontos de vendas podem continuar a tê-lo no catálogo, questionando a Companhia sobre o que irá ser feito a respeito.
A discussão é necessária, já que se o intuito do livro era ser um romance histórico infantil, o texto precisaria ser didático e pensado para o entendimento desta faixa etária, uma vez que a ironia usada para construí-lo dificilmente será entendida pelas crianças que, supostamente, são o público-alvo desta obra.
Se vocês, pais, estão a procura de livros que respeitem e mostrem a diversidade às crianças, abaixo listamos opções que valem a pena conferir:
- Livros para ensinar as crianças a respeitarem as diferenças
- Contos de fadas brasileiros com protagonistas negros
- Livros para conversar sobre deficiência com os menores
- Livros para inspirar meninas a serem o que elas quiserem
- Clássicos infantis que valem a pena ler com os pequenos