Confessionário: “Pai, essa menina é você?”
Como uma transição de gênero aos 42 anos transformou para melhor o relacionamento entre Flávia e sua filha, à época com 8 anos.
Durante as primeiras quatro décadas de sua vida, Flávia Bianco, de Santos (SP), viveu escondida em uma persona masculina, a qual hoje ela se refere como “sapo”. Em 2016, aos 42, revelou à família que era uma mulher trans e mergulhou em anos intensos de descobertas, tensões familiares e desafios.
Um dos principais aprendizados foi reconstruir como mulher a relação com a filha Sofia, à época com oito anos, fruto de seu segundo casamento. No Dia do Orgulho LGBTI, comemorado em 28 de junho, confira o corajoso relato de Flávia.
Primeiro contato com o lado feminino
“Aos sete anos, experimentei pela primeira vez um vestido. Gostei da minha imagem, pensei que gostaria de me vestir assim sempre e, desde então, nutri uma forte atração pelo universo feminino, pelas roupas e maquiagens das minhas primas, sempre observando as mulheres.
Do resto da infância em diante, sempre que tinha a oportunidade de ficar sozinha, vestia alguma peça feminina para me olhar no espelho. Achava estranho porque não era uma coisa fetichista, sexual, e eu sempre fui heterossexual, mas aquilo me completava de alguma forma. Hoje entendo que era minha identidade falando.
Ficava uns minutos me olhando, depois vida que segue. Acho que o fato de meus relacionamentos terem sido sempre com mulheres adiou a transição. Eu sabia que tinha algo diferente, mas não entendia o quê. Queria sair vestida de mulher, mas não gostava de meninos.
Quando o Orkut chegou ao Brasil, tive contato com o termo crossdresser [homens que vestem roupas femininas e vice-versa]. Me identifiquei com isso e passei a, mesmo casada, vestir roupas sozinha e me aperfeiçoar na maquiagem”.
A saída do armário e o distanciamento da filha
“Aos 42 anos, em 2016, perdi meu emprego, meu segundo casamento acabou e, consequentemente, houve uma separação da minha filha, que tinha sete anos. Foi um momento de ruptura muito intenso. Como fiquei desempregada também quando ela nasceu e a mãe trabalhava, eu que dava mamadeira, trocava fralda, levava e buscava na escola, então nossa relação era muito próxima.
A separação foi um choque violento. Me fazia muita falta não estar com ela todos os dias, eu chorava muito. Parecia insuportável ter perdido tudo que construí. Entrei num processo de depressão, aquele negócio de perder o chão mesmo, e por vezes tive até pensamentos suicidas.
Voltei pra casa da minha mãe, que me acusava pelo fim do casamento, pelo desemprego, estava esmagada por todos os lados. Nesse período já tinha um perfil como crossdresser no Facebook, vi o convite para um encontro em São Paulo e pensei “para quem está pensando em matar, por que não viver a experiência de sair vestida de mulher antes?”
Subi a serra como homem e saí do hotel onde nos hospedamos como Flávia. Achei que não teria coragem, mas quando coloquei o pé pra fora minha vida mudou para sempre. Não senti nenhuma apreensão, parecia simplesmente natural. Fui para o encontro, conversei, dancei, tive uma desenvoltura como se tivesse vivido assim a vida inteira. Eu era aquela pessoa.
Depois de outros encontros, conheci a Nicole, uma crossdresser que estava se assumindo trans. Não entendia sobre o assunto, porque ela estava fazendo isso agora, depois dos trinta, a enchi de perguntas. Quanto mais ela falava, mais tudo aquilo fazia sentido para mim.
Eu me senti tão bem como mulher que, ao invés de me matar, resolvi tirar do armário a Flávia que estava guardada desde os sete anos, e jogar o sapo, a figura masculina na gaveta.”
Ataques de intolerância e mergulho na identidade
“Em 2016, comecei a contar para as pessoas, recebi muitos tapinhas nas costas, mas acho que perdi mais de 90% do meu círculo de amizades, e passei a sofrer muita intolerância da minha família e da ex-mulher.
Minha mãe falava ‘você acha que vão te dar emprego com você vestida de boneca?’ ou ‘ninguém vai querer viver com alguém que faz uma palhaçada dessas’ ou ‘seu casamento acabou por sua culpa’. Enfim, eu era muito desencorajada, mas segui em frente, comecei a fazer novas amizades no meio da diversidade, participei da criação das duas primeiras paradas LGBT de Santos e mergulhava cada vez mais na identidade feminina.
A única pessoa da família que me apoiou foi minha tia Regina, irmã da minha mãe, que me ligou para falar que estava feliz porque perdeu um sobrinho, mas ganhou uma sobrinha. Fazia anos que eu não falava com ela, achei isso de um carinho, de um amor que nunca tive da minha mãe. Ela falou: ‘Viva a sua vida, vai ser feliz!’
Em 2017, comecei a trabalhar como Uber, o que foi importante porque eles permitiram que eu usasse meu nome social mesmo que ainda não houvesse feito a mudança oficial. Isso fez com que eu me afirmasse ainda mais, atendia passageiros como Flávia, ganhei clientes fixos, me afastava da carga negativa que tinha em casa”.
Apresentando Flávia à filha
“A única coisa que me fez repensar a transição nesse processo todo foi imaginar a reação da Sofia, minha filha. Minha mãe falava que ela nunca mais falaria comigo, que as pessoas apontariam para nós na rua e ela ficaria com vergonha.
Eu tinha esperanças de que ela não seria assim, mas ficava com muito medo de contar. Nessa época, já vivia de saia, vestido e maquiagem, mas usava bermudas e camisas unissex quando estava com ela. Mesmo assim meu cabelo estava alisado, sobrancelha feita, orelha furada, meu visual era bem diferente e ela percebia isso.
Um dia, ela reparou em restos de esmaltes no canto da minha unha e a mãe dela me disse para eu segurar a minha onda. Isso passou e, poucos meses depois. ela conseguiu desbloquear meu segundo celular, que eu dizia para ela que era do trabalho, mas na verdade era o telefone da Flávia.
Meu plano de tela era uma foto minha linda, eu toda montada no saguão do Aeroporto de Congonhas. Não deu tempo de eu fazer nada, ela virou o telefone para mim e falou: “Pai, essa menina é a sua cara, é você? Não mente para mim”. Ela me olhava com cara de surpresa, mas não parecia estar com raiva nem nada do tipo.
Pensei: “é agora”. Falei para ela que iria viver como aquela mulher da foto, que meu nome era Flávia, e estava fazendo um tratamento para ficar cada vez mais feminina. Pedi para que ela sempre falasse comigo, perguntasse as coisas, e me enxergasse como pai independente da minha aparência.
Fiquei preocupada, mas ela falou: “Pai, eu sei que não muda nada”, ligou o videogame e começamos a jogar como se nada tivesse acontecido. De lá para cá, ela começou a fazer perguntas, e respondo tudo: por que eu escolhi o meu nome, por que faço isso ou aquilo, pedia para eu mostrar as perucas antes do cabelo crescer e as coisas foram fluindo.”
A redescoberta da paternidade
“No primeiro momento, a Sofia falou para a mãe que se incomodava quando estava na rua comigo e as pessoas olhavam e davam risada. Mas hoje ando com ela para qualquer lugar, ela me apresenta para as amigas como pai, fala que meu nome é Flávia, grita pai no supermercado sem se preocupar com o fato de todo mundo olhar.
Nosso relacionamento se transformou junto com a minha transição de gênero. Eu já morria de orgulho dela, mas ela me surpreendeu de uma forma muito profunda, porque é o único elo de conexão entre minha família e eu.
Sinto que tudo isso me aproximou mais dela. Quando eu vivia a vida masculina, embora tivéssemos uma relação boa e eu participasse mais do seu cotidiano, não falávamos de sentimentos e acho que colocar minha verdade para fora ajudou muito a criar um elo ainda mais afetivo entre nós.
Minha filha reagiu dessa maneira porque sempre trabalhei o respeito à diferenças com ela, seja de raça, orientação sexual ou qualquer outro aspecto. Toda criança nasce com esse respeito, mas acaba sendo influenciada por discursos preconceituosos dos adultos.
Tanto que, quando vou à escola dela, sou bem recebida pelas crianças – o problema sempre são os pais. Digo que a chave para resolvermos homofobia, racismo, machismo, transfobia está nas crianças, por meio do cultivo do respeito e do amor. E a geração da minha filha parece pronta para isso.
Hoje estou trabalhando em uma grande empresa de seguros, casada com uma mulher, que me apoia muito, e uso a minha história para ajudar outras pessoas. As pessoas dizem que ser transexual não é ‘coisa de Deus’ mas, se não cai uma folha sem que Deus permita, então algum motivo há para eu estar aqui. É isso que me move a continuar.”