Crianças trans: especialistas falam sobre a disforia de gênero
A certeza de ter nascido no corpo errado pode surgir bem no começo da vida. Entenda por que e veja o depoimento de pais que passaram pela situação.
As crianças trans existem. E atualmente cerca de cinquenta estão sendo acompanhadas pelo Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo, pioneiro no país na assistência e orientação a famílias com filhos trans. A questão é de tal relevância que em junho de 2017, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) lançou um manual para orientar pediatras sobre a disforia de gênero, definida como um “desconforto ou sofrimento causado por uma discrepância entre a identidade de gênero de uma pessoa e seu sexo atribuído no nascimento”.
O objetivo do guia, que foi atualizado em setembro, é assegurar o correto atendimento e encaminhamento dos pacientes, que devem ser atendidos por uma equipe multidisciplinar. E não é só no Brasil que os pediatras estão atentos a casos de transgêneros na infância. Em 2016, a Academia Americana de Pediatria (AAP) também publicou um documento sobre o tema, intitulado Apoio e Cuidado para Crianças Transgênero. “Mal-entendidos sobre crianças transgêneros indicam que muitas ainda não recebem o apoio que merecem e as consequências podem ser trágicas. Felizmente, sabemos mais do que nunca que essas crianças precisam crescer seguras e saudáveis. Nos Estados Unidos e em todo o mundo, as políticas e as atitudes estão mudando para melhor apoiar as crianças transgêneros”, diz a entidade na publicação.
O assunto é polêmico e ainda gera muitas dúvidas nos pais, mas pode aparecer cedo em casa e em qualquer família. “Por volta dos 2 anos de idade, a criança já tem consciência de que há o feminino e o masculino e algumas delas percebem que seu comportamento não condiz com o que o corpo indica”, explica Scott Leibowitz, psiquiatra do Nationwide Children’s Hospital em Ohio, nos Estados Unidos, e diretor do programa THRIVE, que estuda as questões de gênero em crianças. E é por volta dos 6 ou 7 anos que a desconformidade entre o sexo biológico e a identidade de gênero pode ficar mais evidente.
Esses padrões de comportamento são assimilados pelo bebê ainda nos primeiros anos de vida: ele vê como é a mãe, como é o pai e entende o que é homem e mulher e o que se espera de ambos. E caso o pequeno se identifique mesmo com o gênero oposto ao que nasceu, o primeiro sinal será a forte atração pelas coisas culturalmente associadas a ele.
O que não quer dizer, entretanto, que uma menina que adora brincar com carrinhos e não se interessa por bonecas será transexual. Está aí um dos tabus mais fortes a permear essa discussão. Como na sociedade há uma forte divisão entre “coisas de menina” e “coisas de menino”, qualquer desvio desses padrões de conduta pode assustar e até gerar tensão em casa. “Não se trata de gostar ou não de um brinquedo, é quem a criança é. O que deve chamar a atenção, além da atração ao universo geralmente relacionado ao sexo oposto, é a insistência, ela dizer que não é menino ou menina, seus sentimentos sobre o assunto“, estabelece Alexandre Saadeh, psiquiatra coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero do HC.
“O ser humano é muito complexo. A criança pode se interessar por coisas ditas do outro sexo e isso não é ruim e nem quer dizer que ela é trans. Há graus de masculinidade ou feminilidade e isso tudo deve ser explicado desde cedo, para que ela não se sinta mal por ser diferente”, comenta Edith Modesto, psicóloga especialista em questões de sexualidade e gênero de São Paulo.
Mas então como saber se a criança é trans?
O documento da Academia Americana de Pediatria e da SBP destacam outros indícios aos quais os pais e pediatras podem estar atentos. Entre eles o desejo dos pequenos em se vestir com trajes do sexo oposto e o sofrimento da criança em relação ao sexo biológico, que pode piorar conforme ela vai crescendo. “Eu tenho pacientes que com quatro anos entraram no meu consultório dizendo: ‘Doutora, fala pra minha mãe que eu sou uma menina'”, relata Edith. Se o pequeno realmente não se sentir à vontade no próprio corpo, isso ficará mais claro por volta dessa idade mesmo, período em que a identidade já está firmada.
Depois dessa faixa etária, as manifestações passam a ser ainda mais contundentes e a criança pode ter problemas de interação social, apresentando ansiedade ou depressão. “Ela insiste que não é uma menina ou menino e pode, ainda, ficar com raiva se for obrigada a seguir padrões de gênero, além de triste e fechada”, detalha Leibowitz. E, diferente do que se pode pensar, acompanhar e dar atenção a esses sinais desde o começo da vida não quer dizer incentivar. Pelo contrário, com os anos de acompanhamento será mais fácil determinar, lá na frente, aos 16 anos, se é isso mesmo que a pessoa deseja. E só então começar a terapia hormonal.
Por isso mesmo, o ambulatório da USP está em fase de transição para atender somente crianças e adolescentes. “O diagnóstico precoce faz muita diferença, porque por desconhecimento, a família pode tentar reprimir, o que fará com que a criança esconda seus sentimentos por medo de desapontar os pais e isso trará efeitos em sua vida adulta”, aponta o coordenador desse centro de referência.
Os efeitos do apoio do pais são nítidos. “Antes ela tinha pesadelos recorrentes, problemas para dormir e sofria muito bullying na escola, tanto que passava mal na hora de ir. Agora dorme superbem, explicou sozinha a situação para seus colegas de classe e as coisas melhoraram muito”, celebra Karina Doblado, 38 anos, mãe da menina trans Melissa, de 12.
Menino trans = criança atribuída ao sexo feminino ao nascer que se identifica como menino;
Menina trans = criança atribuída ao sexo masculino ao nascer que se identifica como menina
O que devo fazer se notar esses sinais no meu filho?
Os especialistas pregam muita conversa, apoio e mente aberta. “A criança não está emitindo uma opinião, está dizendo quem ela é, e precisa ser ouvida pelos pais”, reforça Saadeh. “Eles devem estar abertos à possibilidade de seu filho não estar dentro dos padrões de gênero, independente de ele ser trans ou não”, complementa Leibowitz.
Ninguém está dizendo que o processo é fácil. “Entendo que possa gerar medo nos pais, da criança se arrepender e pela própria perda de um filho para a chegada de uma filha. Mas se essas questões não forem resolvidas na infância, deixarão marcas para a vida inteira”, completa Edith.
Para garantir, então, um crescimento saudável e evitar sofrimentos no futuro, o ideal é fugir dos estereótipos. “A mensagem a ser passada é a de que meninos e meninas podem brincar do que quiser e fazer o que quer que eles sejam bons fazendo. E que os filhos serão amados do mesmo jeito”, completa o especialista norte-americano.
Assim, a orientação é não tentar corrigir ou impor comportamentos, para que o pequeno não sinta que está desagradando aos pais e guarde para si a sua frustração. “Pergunte como a criança se sente, porque se sente daquela maneira e trate tudo de maneira lúdica, sem que a situação ganhe peso negativo”, orienta Saadeh.
Uma vez que os pais procuram ajuda, a família toda é acompanhada e a criança faz sessões periódicas com psicólogos e psiquiatras. No início da puberdade, elas podem optar pelo bloqueio hormonal, que impede o corpo de amadurecer até que os médicos e elas, principalmente, tenham certeza de que caminho seguirão.
A história de Melissa
Por volta de 2007, Karina Doblado percebeu que a filha, então Miguel, com 2 anos de idade, era diferente. “Desde que ela começou a andar queria usar meus saltos, colocava toalha na cabeça para fingir que era cabelo e eu achava que era só uma identificação forte comigo”, conta a psicóloga de Itupeva, no interior de São Paulo.
“Por volta dos 4 anos, tudo que a Mel fazia era ‘coisa de menina’, ela andava e falava como uma, ficava olhando os vestidos das lojas, ignorava os brinquedos ‘de menino’ que a gente oferecia, como carrinhos, e só queria saber das bonecas”, continua.
Aos 6 anos, a família tinha certeza que não era uma fase, mas não sabia ainda como lidar com a situação. “Eu pensava: ‘vou apoiar se ele for gay’, mas dizia que não precisava se vestir como menina como ela fazia, pedia para vestir roupas do pai, mas ela transformava as camisetas dele em vestidos”, relata a mãe.
O primeiro contato com o termo trans ocorreu logo depois, por meio de um primo. No aniversário de 9 anos, a criança pediu de presente que ganhasse uma nova identidade: Melissa. “Não foi uma surpresa, porque ela já tinha contado para nós muitas vezes que queria ser uma menina”, relembra Karina.
A menina, hoje com 12 anos, é sorridente e extrovertida, tem uma vida social intensa, cercada de amigas e até um canal no YouTube, onde compartilha seu dia a dia com seus quase 15 mil inscritos.
“Você acha que é o fim do mundo, mas tudo o que a gente passa é pequeno perto de ver a felicidade da criança sendo quem ela é”, avalia a psicóloga. Melissa é uma das crianças acompanhada pelo ambulatório da USP.
Quando a descoberta ocorre mais tarde
Para Gustavo e Cleber, de Curitiba, tudo aconteceu de maneira totalmente inesperada. Em 2016, o casal adotou três irmãos, entre eles João, o mais velho, então com 8 anos, hoje Maria Joaquina.
“Na época, o pastor responsável pelo abrigo onde eles estavam me disse: ‘o João chegou aqui uma menina’, e achei que ele estivesse falando do cabelo comprido, pois nem sabíamos que era possível uma criança ser trans e tampouco via sinais de que ele era gay”, conta Gustavo Cavalcante Uchôa, empresário e pai das crianças.
O fato de terem adotado dois meninos que brincavam com carrinho e jogavam bola, aliás, foi recebido até como um alívio. “Por puro preconceito, fiquei feliz de saber que ninguém diria que eles eram gays só por serem filhos de um casal gay”, completa.
Quando chegou em casa, o filho começou a mudar. “Notamos que ele não brincava com nenhum carrinho que ganhou na sua chegada e ficou mais sério. Ainda carinhoso, mas um pouco distante”, conta o pai.
Um mês depois, em janeiro, veio a surpresa. “Nós estávamos na cozinha, prestes a sair, e ele apareceu de vestido, laço no cabelo e sapatilha. Estava radiante de felicidade. Achei que era curiosidade de criança e pedi que trocasse de roupa, ele ficou triste, mas concordou”, recorda o empresário.
A criança insistiu nas roupas e nos acessórios femininos da irmã mais nova e os pais permitiram, mas só dentro de casa. Até que o desconforto com o corpo cresceu significativamente, João escolheu seu novo nome – Maria Joaquina – e os pais procuraram ajuda profissional.
“Para a família, foi um choque pois todos estavam acostumados com um João fechado, sério e conheceram a Jojo, apelido ‘neutro’ que pedimos para ela escolher. Mas depois disso, ela se mostrou uma menina feliz, falante e sorridente”, revela Gustavo.
“Os amigos nos encheram de opiniões, ela sofreu um caso de bullying na escola e em diversos momentos me questionei se apoiar era certo, mas era angustiante ver a luta dela para suprimir quem ela era”, desabafa o pai.
Hoje, Maria Joaquina também faz acompanhamento no Hospital das Clínicas em São Paulo periodicamente e em Curitiba, onde mora. Em agosto, ela começou a ir como menina para a escola e comemorou seu aniversário de 9 anos em casa, sem convidar os amigos da escola, para se sentir mais à vontade usando o vestido que ela mesmo escolheu pela internet. “Estava linda, cercada de pessoas que a amam e assim vai ganhando força para enfrentar tudo e todos. E nós também”, finaliza Gustavo.