Em outubro, o vídeo de duas irmãs pequenas viralizou na internet. O registro feito pela madrinha pretendia capturar o momento em que as sobrinhas cantavam parabéns durante o aniversário da mais nova, de três anos, mas acabou ganhando grandes proporções quando a cena fugiu do script e a mais velha, de seis, decidiu apagar a velinha da aniversariante – no que esta revidou, puxando os cabelos da menina.
A postagem gerou muito debate em torno da exposição desnecessária das crianças, mas também em relação à reação de cada uma delas. “É uma briga natural entre irmãos”, disseram algumas pessoas. “As duas estão aprendendo a lidar com o que sentem”, pontuaram mais usuários. Outros se assustaram com o comportamento das pequenas, questionando se é possível que a infância também seja acompanhada de emoções que são geralmente associadas aos adultos, como inveja, raiva e rancor.
A verdade é que, embora os sentimentos apareçam de forma diferente nos primeiros anos de vida, eles existem e são inclusive típicos de alguns marcos do desenvolvimento. “A criança por volta dos três anos de idade tem uma tendência a demonstrar para os pais um comportamento mais maldoso, cruel, que por vezes até os assusta. Na realidade, é um movimento super importante e que justifica as histórias infantis terem sempre uma bruxa, um malvado, um vilão”, explica Tiago Tamborini, psicólogo e especialista em comportamento de crianças e adolescentes.
É justamente nesta fase que o pequeno descobre que ele e o outro são pessoas diferentes e, a partir daí, começa a ter condição de se testar como um sujeito autônomo, como conta o psicólogo. “Este processo permite que a criança viva suas fantasias internas – de por exemplo, derrubar um objeto, quebrá-lo ou deixar o outro irritado”, esclarece.
No mesmo sentido, a psicanalista Malvine Zalcberg afirma que há uma agressividade natural na criança, mas que dependendo de sua atitude ela pode estar sinalizando algo a mais, que merece a atenção dos pais. “As crianças reagem a tudo que elas vivem e podem ter todo o tipo de reação. Por isso, ela pode ser violenta, pode querer machucar o outro, mas só fará isso se não estiver se sentindo bem consigo mesma”, diz Malvine, sinalizando que o pequeno possa estar em conflito com sentimentos que não entende bem.
E quando falamos especificamente da inveja?
Antes de tudo, precisamos diferenciar o que chamamos de inveja do ciúmes. “Inveja é quando a pessoa quer algo que o outro tem. Já o ciúmes aparece quando, por exemplo, a mãe dá atenção para outra pessoa e desvia o olhar da filha ou filho”, responde a psicanalista. “Ou seja, está relacionado ao fato de alguém exprimir uma emoção ou um sentimento em relação a outro ou a alguma coisa que não você”, complementa Tiago.
Um segundo esclarecimento diz respeito ao fato de que nem sempre a inveja na qual estamos acostumados a pensar corresponde à forma como o sentimento aparece nas crianças. “O grande problema é a gente nomear dando esse lugar da inveja como algo pejorativo. Temos a tendência de associar ao sentido de tomar o que é do outro, impedindo que ele tenha. Neste caso, pode parecer que ela quer estragar o aniversário da irmã ou quer para ela o parabéns, mas quando falamos de relações infantis a situação geralmente é diferente”, exemplifica Tiago.
No caso do vídeo que circulou nas redes, a criança que assopra a vela primeiro está fazendo algo que diz respeito ao desejo dela de viver aquela experiência, de acordo com o especialista. “Assoprar a velinha é legal, e ela só tem a chance de fazer isso uma vez ao ano, que é no aniversário dela. Então, ela vê a irmã fazendo isso e enxerga como uma oportunidade”, esclarece.
“Dizer que está com inveja ou que quer estragar o momento da outra tem mais relação com uma construção do adulto. O que ela quer é fazer parte daquilo, viver aquela emoção e isto passa pelo seu objeto de desejo”, acrescenta ele.
Como ajudar as crianças com esses sentimentos?
Tiago reitera: “é natural e saudável que a criança experimente essas atitudes”. Por isso, quando o episódio de inveja ou raiva acontecer, é papel dos pais educar, colocar limites e apresentar as consequências. “Mas sem cair no pensamento de que o filho tem algum problema comportamental ou é mal educado”, completa.
O passo seguinte é exercitar a empatia. A ideia aqui é convidar o filho a se colocar no lugar do outro, mas no sentido de imaginar as consequências de seu ato – dizendo, por exemplo: “você também faz aniversário. Como se sentiria se seu amigo soprasse a velinha na sua frente?”.
“É importante mostrar que há um impedimento, mesmo que haja um desejo e este talvez seja o momento inaugural para pôr em prática a lição de que ‘seus desejos não são os seus direitos’. Afinal, desejar é absolutamente humano, mas entender que o que queremos é sempre do nosso direito já envolve ultrapassar alguns limites”, afirma o especialista.
Além disso, tanto a criança que tirou algo da colega quanto a que perdeu esse objeto podem ser favorecidas quando estimuladas a nomearem os seus sentimentos. “Porque nem sempre elas têm o vocabulário e a condição emocional para fazerem isso sozinha. Então os cuidadores podem dizer: ‘entendi que você está com raiva, que está frustrada… Mas quais as consequências disso? Como te faz sentir?”, propõe Tiago.
A ação não precisa parar por aí. Depois do diálogo, os pais podem propor uma alternativa para o conflito, colocando-se em uma posição de “eu sou o adulto e tenho controle e instrumentos para te ajudar”. “Eu abraçaria a criança, tiraria ela do contexto que aconteceu e trabalharia a possibilidade de uma solução – como cantar o parabéns novamente ou acender outra velinha”, indica o psicólogo.
O que é melhor evitar…
Se algumas atitudes são aconselháveis e ajudam positivamente os pequenos a lidarem com aquilo que sentem (e ainda não entendem), outras podem ser bastante prejudiciais. Neste sentido, o psicólogo elenca logo duas delas: “Recomendo que os pais não entrem na mesma frequência de irritabilidade que a criança está – dando bronca e batendo, por exemplo – e não validem o seu comportamento – dizendo que a colega mereceu ou algo do tipo”.
A psicanalista concorda, afirmando que castigar é a pior das reações que os adultos podem ter, pois deve deixar o filho mais irritado. O melhor, segundo ela, é acolhê-lo e buscar entender o que está perturbando-o. “Não podemos ensinar a criança a não se incomodar, temos que saber por que ela fez isso. O exemplo da menina de seis anos é bom para lembrarmos que ela tem discernimento dos seus atos, mas ainda seria cedo para ter de se responsabilizar completamente por eles”, pontua ela.
“Olhar e acolher de maneira atenta e interessada é fundamental para a construção de uma ligação forte entre criança e pais”, conclui a especialista. Assim, se a família conseguir descobrir e rearrumar o que pode estar gerando o incômodo, melhor. “Mas se o comportamento começar a tomar proporções preocupantes, devem procurar ajuda especializada”, finaliza.