“Decidir ser mãe num país em que o racismo é estrutural é traumático”

No Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, a mãe Jacque Torres divide os motivos que a levaram a adiar a maternidade por ser uma mulher negra.

Por Alice Arnoldi
Atualizado em 5 Maio 2022, 10h39 - Publicado em 21 mar 2022, 19h39
 (Jacque Torres/Arquivo Pessoal)
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Sabemos que trilhar a jornada da maternidade não é uma escolha fácil, mas ela fica ainda mais delicada quando olhamos com atenção para os preconceitos raciais que rondam o país. Quem detalha mais o assunto é a enfermeira obstétrica Jacque Torres, criadora do podcast “Pretas que Mudam o Mundo”, que adiou a sua primeira gestação para que pudesse construir uma carreira mais sólida e ter o mínimo de segurança como uma figura materna negra.

Sempre estive trabalhando em mais de uma frente por saber que, como pessoas pretas, não temos garantias. A sociedade não está moldada para nos favorecer, então, precisamos correr muito atrás para construir um caminho que nos dê um pouco de tranquilidade para viver”, reforça Jacque, que foi mãe pela primeira vez ao 38 anos, de Matias.

No Dia Internacional Contra a Discriminação Racial (21), a enfermeira obstétrica ainda lembra que gestantes negras têm mais chances de sofrerem violências durante a gravidez, no parto e, mais tarde, lidam com preocupações invisíveis. Um exemplo citado por ela é o medo que surge, desde o ingresso na primeira escolinha, que o pequeno seja discriminado dentro da instituição – inclusive passando por situações de preconceito como educadores não saberem lidar com desentendimentos entre as crianças que tenham cunho racista.

“É uma sobrecarga invisível porque as pessoas nem se dão conta que famílias negras estão preocupadas com isso e precisam se mobilizar para mudar este cenário. Tanto que são estes detalhes que vão fazendo com que a maternidade preta seja mais desgastante, além de, claro, o medo de que aconteça algum tipo de violência com o seu filho”, enfatiza Jacque.

Veja o relato da mãe na íntegra:

“Tive a ideia de fazer o podcast por causa da minha trajetória profissional: sou enfermeira obstétrica, com uma jornada acadêmica chegando ao doutorado, oportunidade de trabalhar fora do Brasil, e relacionada sempre com políticas públicas. Inclusive, tive grande parte do tempo em posição de liderança, e isso ainda não é algo muito comum para mulheres negras no Brasil.

Cheguei a ter um cargo de diretora técnica de um projeto internacional, então, a ideia de criar o podcast foi poder compartilhar vivências e saberes que aprendi circulando nestes espaços, para inspirar outras mulheres negras e dialogar com aquelas que desejam chegar nestas posições e com quem já está nelas, falando sobre desafios específicos que enfrentamos.

Já a motivação de falar sobre a maternidade é porque, muitas de nós, somos mães. Só que este é um tema no meio corporativo ainda muito inviabilizado”.

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Decisão de adiar maternidade por ser uma mulher preta

“Sou uma pessoa que sempre procurei ter redundância profissional na minha vida, isto é, sempre estive trabalhando em mais de uma frente por saber que, como pessoas pretas, não temos garantias. A sociedade não está moldada para nos favorecer, então, precisamos correr muito atrás para construir um caminho que nos dê um pouco de tranquilidade para viver, o que não é simples.

Tanto que a minha escolha por essa construção de uma carreira profissional sólida demandou anos da minha vida: fiz graduação, especialização, residência, mestrado e dourado. Coloquei esta jornada em primeiro lugar e, por isso, adiei muito a maternidade. Engravidei quando tinha 37 anos e não foi um processo simples.

Jacque-Torres-na-primeira-gravidez
(Jacque Torres/Arquivo Pessoal)

Precisei passar por tratamentos, que acabaram não dando certo, mas depois acabei engravidando naturalmente. Vivendo estes percalços em decorrência do adiamento da maternidade, me questionava se fiz a escolha certa, porque ser mãe e ter uma família é muito importante para mim, mas ter uma carreira também. No meu caso, conciliar as duas áreas acabou dando certo, mas nem sempre dá.

Mulheres que desejam ser mães, e também querem construir uma carreira profissional consistente, precisam pensar em como vão dar estes passos porque ainda são situações que não temos o apoio necessário da sociedade. A maternidade ainda dificulta a carreira feminina pela forma como o mercado de trabalho lida com ela – muitas são mandadas embora e perdem oportunidade de ascensão na carreira.

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E tudo isso, para pessoas negras numa sociedade onde o racismo é estrutural, é ainda mais desafiador. Todos os dias temos relatos de situações trágicas, como prisões e assassinatos motivados somente pela cor da pele, então, decidir ser mãe neste contexto é muito traumático“.

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Gestantes negras morrem mais… 

“Ainda assim, minha gestação e o meu parto foram tranquilos de acordo com aquilo que eu queria, porque tive a vantagem financeira de poder contratar uma equipe particular que confio muito. Tanto que tive um parto domiciliar, sem nenhuma intervenção desnecessária, de acordo com o que é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para nascimentos de baixo risco.

Este tipo de parto no Brasil, natural e fisiológico sem nenhuma intercorrência, como episiotomia, manobra de Kristeller, jejum, ocitocina para acelerar o processo e ruptura artificial da bolsa, é raro, representando apenas 5% dos casos tanto de mulheres brancas quanto negras.

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No entanto, figuras femininas brancas são mais submetidas à cesáreas em excesso, porque são pessoas com uma proporção maior de planos de saúde. Já as negras, quanto não estão em maternidades com assistência humanizada, ficam sujeitas a violência obstétrica, excesso de intervenções e peregrinação para o parto.

São preocupações que uma mãe negra tem e que figuras maternas de outras raças e etnias não vão ter. Inclusive, durante a gravidez, temos o receio se nossas queixas não vão ser ignoradas, afinal, o risco de morte materna é maior entre as mulheres negras. Logo, toda essa angústia começa desde a gestação e depois quando a criança nasce, fica ainda maior, especialmente com relação a escola”.

A sobrecarga invisível das famílias negras

“Pude escapar pelo meu conhecimento e situação financeira, mas a realidade da maioria não é essa. A sobrecarga invisível dentro das instituições é muito relacionada a isso: você não tem que se preocupar apenas com o aspecto pedagógico, estrutura da escola e o que ela vai oferecer ao seu filho, mas também se a equipe está preparada para receber uma criança negra.

Se questionar se ela não vai ser discriminada, preterida, se a escola vai saber lidar com o cabelo do seu filho, por exemplo, e como vai ser a reação diante de uma situação de racismo entre as crianças. Várias questões que muitas instituições não estão preparadas e você, como mãe de uma criança negra, precisa buscar estratégias para que isso mude.

Foi o que eu fiz com a escola do meu filho, promovendo um letramento racial, repensando toda a proposta da instituição. Depois de um ciclo de conversas, ela entendeu que precisaria se reestruturar do ponto de vista do corpo docente e bolsas para aumentar o número de alunos negros. Afinal, não adianta mexer só no conteúdo, colocando livros com personagens pretos, caso a criança negra não se veja numericamente naquela escola, nos professores, coordenadores e outros alunos negros.

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Isso teve um impacto que eu gostaria, que era poder, nessa primeira infância, quando a criança se reconhece um “eu” diferente da mãe, que o meu filho pudesse ter essa construção de gostar de quem é e da sua cor dele. Mas é todo um trabalho que recai sobre famílias negras que não acontece com outras.

É uma sobrecarga invisível porque as pessoas nem se dão conta que famílias negras estão preocupadas com isso e precisam se mobilizar para mudar este cenário. Tanto que são estes detalhes que vão fazendo com que a maternidade preta seja mais desgastante, além de, claro, o medo de que aconteça algum tipo de violência com o seu filho”.

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