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Cartas para minha filha

Jornalista e editora do Bebê.com.br, Fernanda Tsuji guarda cartas para o futuro, colecionando textos para sua filha Cecília ler quando for mais velha.
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Não é sobre a filha que desejo criar. É sobre criar a filha que eu tenho.

Não importa o meu gosto, o meu desejo para e sobre você. Importa o seu tempo. E ele precisa passar independente de mim.

Por Fernanda Tsuji
Atualizado em 28 out 2020, 16h15 - Publicado em 28 out 2020, 16h15

Outro dia encontrei uma camiseta no fundo da gaveta com a estampa “Girl Power”. Estava grande ainda para você usar, então ficou lá, guardadinha, esperando você crescer. Por cima, uma infinidade de camisetas de unicórnio, com princesas, glitter….

Antes de você nascer, eu fiz um guarda-roupa minimalista com peças fofas, mas sem nada rosa, sem nada com laço, afinal, estou aqui nesse processo de “construção da mãe desconstruída”, problematizando o que veio antes e barrando retrocessos.

Mas já diziam as mulheres que vieram antes de mim e de você: a maternidade é ninho de expectativas – frustradas, muitas vezes. E quando você se dá conta disso, percebe a ironia embutida.

Hoje entendemos que é preciso quebrar padrões, derrubar o patriarcado e criar meninas fortes, mas acabamos não permitindo o que tanto desejamos para as nossas filhas: que sejam livres. Que gostem do que de fato gostem, que cresçam no seu tempo e no seu entendimento.

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Queremos que vocês já nasçam no nosso grau de internalização das problemáticas do mundo. Bem injusto, uma vez que as mães desta geração também estão aprendendo.

E repudiamos o rosa, as princesas, símbolos do ultrapassado e do que não acreditamos. Criamos uma criança de 4 anos espelhada em uma adulta de 36 e isso tem me incomodado, filha. Talvez, quando você me ler aí no futuro, tudo isso já vai ser parte de um passado remoto e assim espero. Mas daqui onde estou, ando repensando. Minha função não é podar seus gostos, mas te ajudar e direcionar nas questões que aparecerem.

Aí sim, com a compreensão que eu adquiri até aqui na minha jornada, eu não perpetue através de você padrões que já não fazem mais sentido.

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Elsa x Frida

“Quero ver Frozen”. De novo? “De novo”. Não prefere ver esse da Mulher-maravilha? “Não, esse é chato”. Expectativa-realidade às 10h da manhã. Quatro meses depois: “Mamãe, e se a gente assistisse este aqui com as meninas heroínas?”

(Vale dizer que nesse meio tempo, eu, também na construção eterna, já tinha achado que super-heroínas eram um exemplo muito nocivo de que mulheres têm que dar conta de tudo, salvar os outros, enfim, questão que sempre voltam na minha terapia, e já nem queria mais assistir este desenho. Elsa, em sua busca por autoconhecimento, parecia mais interessante mesmo. )

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Mas foi aí que eu percebi: não importa o meu gosto, o meu desejo para e sobre você. Importa o seu tempo. Ele precisa passar. E virão princesas e passarão, e virão heroínas e passarão, e todas as muitas coisas que você ainda vai gostar e desgostar. O que fica é você.

Não cabe a mim acelerar entendimentos. Cabe estar aqui para responder às suas muitas e infinitas perguntas, para sinalizar novas maneiras de pensar e para afastar o retrocesso quando ele se aproximar. Acreditando que, assim, através de conhecimento e exemplos positivos, você vai construindo sua visão de mundo. E eu vou aqui, olhando de perto, curtindo cada fase. Mesmo porque, eu sei que a próxima já bate a porta logo mais.

Poder das meninas

E um dia, depois de semanas usando fantasias de princesas, você encontrou a tal camiseta “Girl Power” na gaveta e me perguntou o que estava escrito. “Poder feminino ou poder das meninas”, eu respondi, simplificando. “Uau! Que ‘inquível‘. É isso que eu quero vestir”. Veja bem, uma estampa tão batida para minha geração e que pareceu tão nova e fresca para você…

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Na hora de dormir, segurando uma Barbie japonesa, você escolhia o livro que íamos ler. Ignorou os de sempre, mexeu nos pouco lidos e encontrou aquele da Frida Kahlo ilustrado, lembra? (Será que você ainda têm, será que eu ainda tenho, Ceci?)

A gente leu, você me inundou de perguntas, e eu respondi todas tentando ser sincera e respeitando os seus quatro anos de entendimento do mundo. “Ela amou homens e mulheres, ela ficava triste e sozinha às vezes, ela queria ser livre, do jeito que ela é”. “Hum, gosto dela, mamãe”, você me disse e no dia seguinte, explicou pro seu pai: “Ela e o Diego namoraram muitas pessoas, papai, e tá tudo bem”.

E foram muitas noites repetindo o livro da Frida, depois o da Clarice Lispector ilustrado, em seguida o Hair Love… A Elsa e a Anna – que também têm seu valor, veja bem –  continuavam ali por perto, mas o repertório foi se ampliando.

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A mãe “desconstruidona” sorriu dentro de mim. Gravei um vídeo seu folheando por um tempão estes livros e não vou mentir que me deu aquela vontade de posar de bacanuda no Instagram. “Olha como minha filha é legal” – consequentemente, “olha como sou uma boa mãe”.

Mas logo me veio o pensamento de que isso é só um pedacinho de nós duas, que a beleza de verdade está na sua construção, na nossa rotina, onde o exercício diário de perguntar e responder vai nos ensinando e criando as bases de quem você é e da mãe que eu sou. E ninguém além de nós duas precisa ver (eu ainda tenho estas fotos e vídeos, me pede que eu te mostro, filha).

É muito mais de conversar, errar e acertar, se arrepender e fazer de novo, do que de repudiar um desenho ou uma cor. Isso são apenas fases. E elas passam e dão lugar a outras, porque crescer também é mudar, adaptar, redefinir. Mas precisa ter espaço pra viver cada etapa e cada escolha.

Em algumas delas, nós vamos nos encontrar em nossas expectativas virando realidade, em outras não. O que a gente precisa é de respeito. Eu com você, você comigo e a gente com o tempo e com quem nós somos.

Não é sobre a filha que eu desejo criar. É sobre criar a filha que eu tenho. Você. Te deixando ser quem você é, transformando expectativa em torcida, tentando te ajudar a decifrar o mundo sem desmerecer o seu valor e a sua voz.

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