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Barriga de aluguel no Brasil: como funciona e quais os limites?

Por aqui, o processo é bem diferente do usado nos EUA por famosas como Kim Kardashian, Ellen Pompeo e Sarah Jessica Parker

Por Raquel Drehmer
Atualizado em 25 set 2017, 11h25 - Publicado em 22 set 2017, 22h06

Nos Estados Unidos, recorrer a uma barriga de aluguel para realizar o sonho de ser mãe ou pai é algo sem impedimentos. Todo o processo é controlado por agências e não há restrições quanto a quem pode gerar o(s) bebê(s) de quem; havendo um acordo formal – e normalmente financeiro – entre os pais biológicos e a mulher que se propõe a engravidar por eles, tudo é feito tranquilamente desde a inseminação artificial até a entrega do(s) bebê(s).

Essa facilidade faz com que não seja raro sabermos de casos de pessoas famosas que optam por essa modalidade de gestação por lá. Embora ainda não tenham falado oficialmente a respeito, Kim Kardashian e Kanye West estão esperando o terceiro filho por barriga de aluguel. Antes deles, Ellen Pompeo (de “Grey’s Anatomy”), Sarah Jessica Parker (de “Sex and the City”), Lucy Liu (de “As Panteras”) e Ricky Martin foram algumas das celebridades que formaram ou aumentaram a família dessa forma.

No Brasil, o processo é bem diferente e ainda está encontrando seu caminho. Conversamos com as advogadas Claudia Nakano, especialista em direito à saúde do Nakano Advogados Associados, e Chyntia Barcellos, especialista em família, sucessões e consultora em diversidade, com o ginecologista e obstetra Adelino Amaral, membro da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia – Núcleo de Reprodução Assistida do Conselho Federal de Medicina (CFM) e diretor regional Brasil da Rede Latinoamericana de Reprodução Assistida (Redlara), e com Danielle Figueredo, que foi a barriga solidária que permitiu que a amiga Gabriela Carlos e o marido realizassem o sonho de ter filhos, para entender tudo sobre como funciona a barriga de aluguel em nosso país.

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Barriga de aluguel, não: o correto é gestação de substituição

Embora o nome popular desse processo seja barriga de aluguel (já foi até nome de novela, em 1990), ele não poderia estar mais distante da realidade brasileira. Isso porque é proibido cobrar para emprestar o útero para uma gestação ou querer pagar para convencer uma mulher a fazer isso. O termo correto por aqui é gestação de substituição. Também pode ser barriga solidária, para ficar mais simples.

Não existem leis que guiem o processo de gestação de substituição ou barriga solidária no Brasil: tudo é regido por resoluções do CFM que são seguidas pela Justiça. “Como o CFM sempre foi muito avançado e vanguardista nessa questão, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acompanha suas decisões. Mas a legislação brasileira em si ainda é muito conservadora”, afirma Chyntia.

As resoluções sobre gestação de substituição vêm sendo criadas e modernizadas desde 1992. A mais recente, de 2015, é a que vale atualmente.

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O que pode e o que não pode em barriga solidária no Brasil

O ponto principal do processo de gestação de substituição no Brasil é que ele não pode ser tratado como uma transação comercial, ou seja, não pode envolver dinheiro. Além disso, a resolução 2121, de 2015, determina que familiares de até quarto grau (primas) da mulher ou do homem podem ceder o útero para uma gestação e fazer uma FIV (fertilização in vitro) em qualquer clínica de reprodução assistida, sem necessidade de uma autorização do CFM.

“Em situações de gestação de substituição em que não haja parentesco é preciso entrar com um processo e conseguir a autorização da CFM para que a FIV seja feita. Será analisado o histórico do caso e das pessoas envolvidas. Todas, tanto as mulheres quanto seus parceiros ou parceiras, caso eles existam, terão que assinar documentos atestando que estão de pleno acordo para a realização da gestação, e haverá avaliação psicológica”, explica Adelino. “Sem a autorização, nenhuma clínica séria realizará o procedimento. O que guia a gestação de substituição é a ética”.

Fora isso, há dispositivos legais que desestimulam as tentativas de fazer o procedimento por baixo dos panos, como explica Claudia: “O artigo 3º do Código Civil veta a cessão de órgãos e o artigo 15º determina que ninguém pode ser constrangido a um tratamento médico ou cirurgia. Os dois artigos, de certa forma, podem ser usados para coibir uma barriga de aluguel, a comercialização do serviço”.

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Um último aspecto burocrático é o registro do(s) bebê(s). Independentemente da origem dos embriões, a Declaração de Nascido Vivo via de regra sai no nome da parturiente, ou seja, da mulher que emprestou a barriga. Para a certidão de nascimento ser feita no nome dos pais biológicos, bastará apresentar no cartório documentos que comprovem a legalidade do procedimento. “A lei de registros, de 1973, não prevê gestação de substituição, mas o CNJ faz valer as resoluções do CFM”, afirma Claudia. E os cartórios seguem as determinações do CNJ.

“O bebê gerado na barriga solidária não é doado, ele é devolvido”

Danielle (à esquerda) e Gabriela com os gêmeos Pilar e Martin recém-nascidos (Danielle Figueredo/Arquivo Pessoal)

As amigas Danielle Figueredo e Gabriela Carlos passaram por todo o processo do CFM para que Dani pudesse gestar os bebês de Gabi. “Quando decidimos realmente fazer a barriga solidária, a primeira coisa que combinamos foi que precisaríamos ter um advogado para fazer tudo certinho”, diz Dani.

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O caso delas foi bem interessante. Sabendo que Gabi tinha muita dificuldade para engravidar e que a fila de adoção estava complicada para que a amiga e o marido conseguissem formar uma família, Dani uma noite sonhou que precisava ceder seu útero para gestar um bebê para os dois. Dani já era mãe de José e de Bento, então com 5 e 3 anos, e conversou com o marido sobre o assunto. Ele embarcou no projeto e Dani fez a oferta para Gabi. Duas semanas depois – período de que precisaram para “digerir” a proposta tão generosa –, Gabi e o marido toparam.

Os quatro, então, seguiram todos os trâmites legais. Fizeram todas as avaliações psicológicas e se comprometeram a cumprir, cada lado, a sua parte: Dani e o marido a fazer todos os exames de pré-natal necessários e a não negligenciar nenhum aspecto da gestação, Gabi e o marido a arcar com os custos da FIV, dos exames e do parto. Iniciaram o processo em agosto de 2014 e, em 24 de dezembro daquele ano, fizeram a FIV em Recife. “Foi rápido. Acho que porque nossas intenções eram boas e isso estava bem claro”, afirma Dani.

No dia 15 de agosto de 2015, depois de uma gravidez tranquila passada em Porto Alegre e em que Gabi viajou mensalmente para acompanhar todos os exames do pré-natal, nasceram os gêmeos Martin e Pilar.

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“Fiquei com uma sensação de missão cumprida”, lembra Dani. “Durante a gravidez, muita gente me perguntava como eu teria coragem de entregar os bebês para Gabi. Acontece que o bebê gerado na barriga solidária não é doado, ele é devolvido. Quando Martin e Pilar voltaram para Gabi, estavam indo para os braços da mãe deles. Eu os carreguei, mas ela é a mãe”.

A amizade, que antes acontecia mais por meio de amigos em comum, ficou forte. Dani é madrinha de Pilar e as famílias mantêm um vínculo grande.

A realidade nem sempre é tão ética assim

Apesar de ser um processo relativamente simples, a prática de barriga solidária no Brasil muitas vezes acontece sem respeitar os limites impostos pelas resoluções do CFM. Não é nem um pouco difícil encontrar pela internet mulheres disponibilizando seus úteros por valores que variam de R$ 5 mil e R$ 30 mil e, na outra ponta, casais oferecendo dinheiro a mulheres com perfis sócio-econômicos que os agradem.

“Alguma clínica pode fazer o procedimento, mas se houver denúncia, ela sofrerá punições e multas por atuação antiética”, afirma Adelino. Criminalmente, no entanto, é difícil haver consequências. “Só haverá punição criminal se alguma paciente recorrer à Justiça”, esclarece Claudia.

Além da questão ética, o problema de procedimentos irregulares é que todas as partes ficam completamente desprotegidas. “É errado e muito arriscado. Um casal pode perder todo seu dinheiro por má-fé de quem diz que quer ajudar, uma mulher que se oferece para ser barriga de aluguel pode ser enganada por desconhecidos. E nenhum deles tem a quem reclamar, porque a lei é omissa nesse assunto e não prevê o que fazer”, explica Claudia.

Havendo vontade ou necessidade de partir para uma gestação de substituição, portanto, o conselho é que a lei seja seguida, obviamente. “É um processo simples. Tanto que é justamente a burocracia da adoção no Brasil que tem empurrado muitos casais a procurarem a barriga solidária nos últimos cinco anos”, finaliza Chyntia.

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