Amor sem idade: tudo o que você precisa saber sobre a adoção tardia
Especialistas explicam como funciona esse tipo de adoção e dão dicas de como encarar e lidar com a situação.
Embora não seja um conceito formal, considera-se tardia a adoção de crianças que já tenham uma percepção maior de si, do outro e do mundo. O critério é vago, mas a estimativa é a partir dos 3 anos de idade. No entanto, para a psicóloga Marcia Porto Ferreira, coordenadora do Grupo Acesso do Instituto Sedes Sapientiae, esse termo deve ser utilizado com cautela: “Esse é um nome que já reafirma um padrão de família tradicional: um pai, uma mãe e um bebê” atenta ela. “Essa família não é mais a norma, mas, mesmo assim, você continua com uma fila enorme de candidatos que só querem bebês. Enquanto isso, outras crianças vão sendo deixadas de lado.”
A afirmação de Márcia é confirmada pelos números: segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), existem atualmente cerca de 5,7 mil crianças e adolescentes aptos a serem adotados. Do outro lado, 33,5 mil pessoas estão computadas como pretendentes para adotar uma criança. O perfil mais procurado por elas? Bebês brancos e sem irmãos. A porcentagem dos candidatos que aceitam crianças por idade vai caindo gradativamente e, dos 8 anos em diante, passa a ser de menos de 1%.
Por que é assim?
Os motivos que levam a essa situação são muitos, mas, para Christian Heinlik, vice-presidente do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (GAASP) e pai de Pedro Vinícius e Gustavo – adotados aos 8 e 9 anos -, se sobressai o medo das pessoas do que significa trazer uma criança mais velha para a sua família. “Aquela questão do ‘o que essa criança vai trazer de bagagem’ é muito forte. Na verdade, muito se fala sobre a criança, como ela vai se adaptar, sendo que 99,9% dos problemas que podem acontecer vêm da cabeça do adulto”, diz ele. Márcia concorda: “No processo de adoção, as principais perguntas que são feitas dizem respeito a quais seriam os cuidados com a criança. Uma questão muito mais importante é: quais os cuidados com os candidatos?”.
De fato, parece haver uma dissonância entre a expectativa dos pretendentes e a realidade. “A maioria dos casais ficam presos na ideia do que eles consideram a criança ideal e não aceitam a possibilidade da criança real” – é o que acredita Áurea Medrado, que adotou a pequena Evelin quando esta tinha de 4 para 5 anos. “Muitas pessoas querem que a criança venha como um papel em branco e ignoram que tudo o que já aconteceu com ela faz parte do que ela é”.
Segundo Márcia, um dos grandes problemas que colaboram para isso é a tendência das pessoas de simplificar o processo da adoção. “A adoção é uma situação que vem para dar conta de algum tipo de desencontro – seja na maternidade, seja na criança que perdeu um familiar ou que veio de uma situação de abandono – e, para lidar com isso, as pessoas tentam simplificar aquilo que não é muito simples” diz ela. “A busca por generalizações é muito grande para minimizar as questões que devem ser feitas. Nesse sentido, adotar uma criança que já fala, já pensa, já acontece, causa medo”.
Na prática, não existe nenhuma diferença legal na adoção de crianças mais velhas em relação à de bebês. O processo é burocrático, com muita documentação envolvida, mas independe da idade. Após a habilitação, cabe aos pretendentes aguardar a convocação do juiz para conhecer uma criança que esteja disponível e atenda aos parâmetros estabelecidos no processo de cadastramento. Esse tempo de espera, no geral, acaba sendo muito longo devido ao número de restrições impostas pelos candidatos. Quando não há restrição de sexo, cor ou idade (além de vários outros critérios questionados durante o processo de cadastramento), a espera costuma ser bem menor. Quando a convocação acontecer, os pais em potencial conhecerão a criança ou adolescente indicado e, caso desejem levar a adoção em frente, entrarão com um pedido de guarda provisória (isso pode acontecer após alguns encontros, ou até mesmo no primeiro), que, no futuro, poderá se transformar em uma adoção definitiva, conforme orientação do juiz.
“E se eu não der conta?”
Essa parece ser a questão que traduz todo esse medo da adoção de uma criança mais velha. Medo da história que o pequeno traz consigo, dos traumas que já pode ter sofrido, de não conseguir estabelecer uma relação de pai e filho com ele… Medos naturais, mas que podem ser enfrentados. “Existem desafios em qualquer tipo de relação” diz Áurea. “Alguns desafios da adoção tardia são particulares, alguns são comuns a pais adotivos e pais biológicos. A questão é como você vai lidar com cada um deles”. A psicóloga Márcia Porto Ferreira complementa: “O filho biológico também precisa ser adotado. A mãe biológica, assim como a adotiva, precisa encarnar essa função de educar”.
A crença de que uma criança mais velha, que não passou seus primeiros anos com uma família, não vai conseguir estabelecer uma relação de amor com os pais adotivos é refutada por quem passou por essa experiência: “Se a gente não acreditar que pode mudar a nossa vida, se acha que a única etapa da vida que faz sentido é a primeira, então é melhor esperar a morte chegar”, diz Christian. O processo de aproximação entre pais e filhos adotados é delicado, mas o vínculo que pode ser estabelecido entre eles não é menos real que o de qualquer outra família. “Para uma criança, abandonar algo que ela já conhece e que, por mais que não seja um bom ambiente, é o que lhe dá segurança, sempre gera ansiedade”, afirma Áurea. “Às vezes, os candidatos idealizam o primeiro encontro, imaginam um amor à primeira vista. Na prática, é um processo delicado de conquista de confiança”.
A adaptação da criança com a nova família
De acordo com as leis de adoção, é obrigatória a preparação psicossocial dos pretendentes. Em muitos lugares, essa preparação pode ser feita por Grupos de Apoio à Adoção (GAA), ONGs geralmente formadas por pessoas que já passaram pelo processo de adoção. Muitas famílias optam por se juntarem a esses grupos até antes de darem início ao processo, para trocarem experiências, conhecerem melhor aquilo que os aguarda ou simplesmente receber apoio durante seu percurso. Esse acompanhamento pode trazer muitos benefícios, como a desmitificação de algumas expectativas irreais e a orientação de como lidar com a integração da criança à família.
Sobre o período de adaptação, Márcia afirma: não tem receita genérica. “As pessoas têm que ter sensibilidade a cada momento, ir trazendo aquela família de encontro à criança tanto quanto a criança de encontro à família. E sensibilidade é uma coisa que não se ensina. É preciso convidar essa criança para uma nova proposta sem violentá-la e sustentar que ela é sua filha.”
Outra questão muito presente é a da autoridade: como se colocar como a figura que manda? “Não tem como você falar desde cedo ‘você vai me respeitar porque eu sou sua mãe’, porque isso não faz sentido algum a não ser que seja real”, diz Áurea. “Precisa ir mostrando, conquistando, demonstrar que você está lá para dar ordens, mas também para dar carinho. Você não pode cair nas armadilhas, sentir pena porque sabe que ela passou por muitas coisas, mesmo que isso seja natural”. Para Márcia, esse é um dos grandes desafios da contemporaneidade nas relações entre pais e filhos. “Um grande equívoco nas famílias atualmente é deixar a criança comandar: independente de ser adotada, a vontade se impõe demais”.
“Você não é meu pai”
Essa é, possivelmente, a mais temida das frases que filhos adotivos podem dizer a seus pais. Todos os medos, inseguranças e dúvidas de um pai são colocados à prova nesse momento. E é aí que mora o perigo. “Se um adulto é afrontado com isso e não está preparado, ele desmonta e leva a criança junto – imagina o seu pai não ter confiança de que ele é seu pai de verdade”, diz Christian. Para Marcia, isso é uma estratégia infantil que todas as crianças usam, de uma forma ou de outra, para testarem seus limites e fazerem valer suas vontades. “Não é tão diferente do ‘eu não pedi pra nascer’ que um filho diria a seus pais biológicos. Como o adulto vai lidar com isso depende muito da segurança que ele tem de ocupar o lugar de autoridade. Se ele precisar demais da aprovação da criança – como muitos pais biológicos também precisam -, essa relação será complicada”.
A psicóloga defende a importância do adulto se sentir legítimo no seu lugar de pai e conseguir sustentá-lo na frente da criança. Apenas assim, ela conseguirá sentir confiança naquela relação e saberá que é querida. “A criança sempre vai testar os seus limites, justamente porque ela precisa ter a certeza de que você realmente gosta dela”, afirma Áurea. “Muitas pessoas ficam balançadas quando ouvem um ‘não te obedeço, você não é minha mãe’, mas esse é o momento exato em que você tem que reforçar que é a mãe, sim, para que ela pare de duvidar da validade daquele vínculo.”
Também é essencial entender a importância de manter um diálogo aberto em relação às questões que aquela criança possa estar enfrentando. Sentir curiosidade a respeito da família biológica e das circunstâncias que a levaram até ali é natural e deve ser conversado abertamente. “Você não pode ter medo do passado e fingir que ele não aconteceu”, diz Christian. Márcia também atenta ao fato de que não há vergonha alguma em recorrer a uma ajuda profissional se ela se fizer necessária. “Se em algum momento o adulto sentir que a criança possa estar tendo problemas na sua vida cotidiana que tenham a ver com isso, ele deve se mostrar aberto para conversar. Em alguns casos, consultar um psicólogo também pode fazer um bem enorme a todos”.
Tudo igual, só que diferente
Compreender que a adoção tardia tem, sim, seus desafios particulares, que é um processo longo e delicado de estabelecimento de confiança e que muitos aspectos dela não são fáceis é essencial. Mas também é importante perceber que dela pode sair uma relação de amor tão profunda (se não mais) quanto em qualquer outra circunstância. Adotar uma criança é um salto no escuro enorme – mas o resultado pode ser fantástico.