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Cartas para minha filha

Jornalista e editora do Bebê.com.br, Fernanda Tsuji guarda cartas para o futuro, colecionando textos para sua filha Cecília ler quando for mais velha.
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Uma carta para não esquecer de quem fomos na pandemia

Eu achei que você, aí no futuro, iria querer saber como sobrevivemos nesse período. (Spoiler: cansadas sim, mas enfrentando juntas).

Por Fernanda Tsuji
Atualizado em 19 abr 2021, 18h43 - Publicado em 17 abr 2021, 14h00

Na terça-feira a gente almoçou e, como tínhamos um intervalo até sua aula online começar, você me pediu pra brincar no quarto. No meio da história do pinguim que se casa com o cachorro, eu deitei no tapete e apaguei. Um sono vindo do nada, do cansaço escondido que escorreu pra fora e me fez cochilar no meio dos brinquedos. Quando despertei, você estava aninhada nos meus braços, de olhos abertos, mas quietinha. Eu abri os olhos e você me disse: “Eu estava te esperando para continuar a brincar… Tá menos cansada, mamãe? “. 

Você respeita meu tempo como ninguém. E eu, que sou mais afoita e atropelada, tenho que me policiar pra entender o seu – ainda tão atrelado ao meu. A gente sempre precisou de mais tempo juntas e agora temos. 

Quase 400 dias depois da última vez que te peguei na porta da escola, nós temos uma nova rotina imposta pela pandemia. Em casa, brincando nos intervalos das reuniões, desenhando com giz e escrevendo este texto, almoçando na mesma mesa que agora é também sua sala de aula. 

Eu achei que você, aí no futuro, iria querer saber como sobrevivemos nesse período, que já se sabe até mesmo daqui, é histórico – e até decisivo para o mundo que você vive aí agora. 

Sobre aquilo que não volta

Primeiro, quero te falar sobre o luto. No comecinho da pandemia, você me perguntou se quem estava morrendo nunca mais iria voltar. Eu quis chorar, e veja bem: o mundo perdia o mesmo número de pessoas que hoje perdemos em um único dia no Brasil. A gente nunca iria imaginar que hoje já teríamos quase 3 milhões de pessoas a menos no planeta. 

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E não, filha, elas não vão voltar.

Estamos passando coletivamente por um luto – das pessoas que perdemos, das rotinas interrompidas, da liberdade. Alguns ainda nem saíram da negação e ficam flertando com a raiva, enquanto outros fincaram os pés na barganha para poder justificar saídas pro shopping, churrascos com amigos, dias de sol na praia. A maioria de nós ainda está na depressão. 

Tento imaginar como é vivenciar tudo isso com apenas quatro anos. Porque, apesar de pequena, você está aqui vendo de perto eu cochilar de cansaço no meio da brincadeira, vendo com o canto dos olhos o jornal mostrar os hospitais lotados, você está aqui, de máscara num dia quente, correndo longe de outras crianças, quando deveria estar perto delas. 

Você está na primeira infância, e no momento em que está tentando decodificar o mundo, ele está tão de ponta cabeça que nem os adultos o compreendem. (Se é que um dia soubemos… se soubéssemos talvez não estivéssemos assim, né?). 

Eu daqui, aprendendo a ser mãe, também me esforço para filtrar e transmitir o que nem eu mesmo entendo completamente. A cada pergunta sua sobre a pandemia, meu cérebro corre uma maratona para traduzir informações complexas de uma maneira que eu não minta, mas que você consiga entender. Percebe a dificuldade? 

No momento que você me lê, já devem ter tantos estudos, teses, vacinas, certezas – eu espero – mas aqui, em 2021, nós estamos tão perdidos, filha, tão desencontrados, tão mal governados. 

Sobre aquilo que me segura

Nos dias bons, eu me levanto antes de você. Faço o café, vejo o jornal – me desespero -, me alongo, luto com a vontade de sair na rua e você me chama no quarto para dar ‘bom dia’. E eu só queria deixar aqui registrado para a posteridade que o seu cheiro me salva todas as manhãs

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Longe de mim querer romantizar a pandemia. Mas, pelo menos, temos uma a outra, temos o seu pai (e os grandes olhos bondosos dele), temos o tempo que queríamos – e precisávamos –  e eu me agarro nesse tanto que ainda possuímos para enfrentar o porvir. 

Tem sobrado desânimo, filha. Vendo o Brasil bater recordes de mortes diários  – eu disse DIÁRIOS -, com muitas demissões (sua avó, seu tio…), eu me sinto ingênua no meu plano burguês e agora completamente surreal de te levar para ver neve quando a “pandemia acabar”.

Esse, aliás, é o mantra que repetimos numa oração coletiva para espantar nossos medos – mas que começo a desconfiar que nos cerca ainda mais no isolamento. Nossos (poucos) planos vão até o almoço de amanhã. Mais longe que isso pode gerar frustração diante da imprevisibilidade da hora. 

Eu sei, biscoitinha, é triste, mas é passado para você. Só queria deixar escrito aqui para a gente não esquecer de quem fomos na pandemia. E eu não quero que essa parte da nossa história particular seja apagada. Afinal, nós estávamos aqui, recriando constantemente a rotina, nos abraçando quando o sufoco vinha, comendo laranja na varanda e tentando enxergar o mais longe possível no horizonte de prédios. Perspectiva, sabe?

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Não quero que seja só o “esperar acabar”, só uma pausa, isso não é justo. Estamos aqui, vivas – e rindo também, muito, você é tão engraçada, Cecília – tentando e acordando todas as manhãs sem poder sair de casa.  

Sobre quem somos e estamos

Quero me lembrar que você aprendeu a escrever o seu nome, passou a dormir na sua cama sozinha, descobriu que gostava de couve, dividiu o alongamento comigo, inventou uma rotina matinal para si da qual você se orgulha muito (escovar os dentes/arrumar a cama/dobrar o pijama/colocar a roupa/desenhar), num esforço próprio e inconsciente de mostrar que a vida aqui dentro persiste, continua, apesar.

Quando você se irrita ou se entedia, você repete pra si mesma uma frase que viu num desenho – baixinho ou aos berros, dependendo do grau da frustração – “paciência, paciência, o jogo é assim”. Lembra disso? 

Nos dias ruins, quando a aflição do confinamento aperta, você pede que eu descreva lembranças – “com detalhes, mamãe” – de como era quando eu te buscava na escola de ônibus e a gente ia na sorveteria, o dia que ficamos na praia até ficar escuro, aquela vez que você viu uma galinha. E também coisas que você ainda quer fazer: como é tocar na neve, abraçar o Mickey, brincar de polícia e ladrão com muitas crianças juntas. Estamos no segundo ano do isolamento, mas para uma criança de quatro anos de idade, já é uma grande parte da vida. 

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Também quero que você se lembre de mim agora. Eu aprendi que não vai dar para ser a melhor equilibrista do mundo (meus pratos vão desabar), entendi que estar em movimento não é igual a correr, compreendi que cada um tem o seu tempo. E obrigada por me ensinar esta parte, filha. 

Aprendi também que posso ser feliz e triste no mesmo dia. Que posso fazer dueto de Frozen enquanto trabalho e achar graça, mas que nem todo dia me sinto bem correndo em 70 num circuito de desafios diários que envolve pular os brinquedos no chão, colocar seu almoço no forno, encontrar a tampa do pote na gaveta e separar os materiais da escola enquanto mando áudio para a equipe. Cansa muito, você pode imaginar. 

Entendi que sou eu também ali, alongando o corpo tenso na madrugada, escrevendo minhas dores em blocos de nota no celular e te olhando dormir como quem observa o horizonte. Perspectiva, amor, eu preciso de perspectiva. 

Nos dias ruins – desta vez, para mim-, aqueles em que não consigo dormir, eu olho para minhas frustrações e tento acalmar meus desejos que ficaram pelo caminho ou para depois da pandemia. Um café com uma amiga, uma tarde no parque com você, sua mão tocando a neve. Mas também tento me recordar do que tenho agora: você mais tempo comigo, uma chance de cochilar depois do almoço, uma brincadeira no meio da tarde. Penso ser um tipo torto de esperança dentro do meu pessimismo.

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Durmo me convencendo de que ainda tem muita vida, de que só preciso me acalmar, deitar do seu lado, olhar bem longe e esperar. O jogo – de estar vivo no agora – é assim. Paciência. 

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