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“Sofri violência obstétrica e convivo com as sequelas do parto”

O parto nada humanizado deixou marcas físicas e psicológicas severas em Fernanda e em sua primeira filha.

Por Laís Barros Martins
Atualizado em 27 jun 2017, 01h21 - Publicado em 26 jun 2017, 17h03

Fernanda Melo, de 34 anos, fala sobre as marcas irreversíveis que a experiência do parto deixou nela e em sua bebê, a pequena Maria, de 5 meses. Confira o relato sobre o desrespeito que começou nas consultas e se estendeu para a hora do nascimento, um momento que era para ser de felicidade e de boas lembranças – não o contrário!

“Minha história é acometida de erros antes mesmo de engravidar. Depois de longas conversas e considerações, eu e o meu marido resolvemos ter um bebê. Quando tomamos essa decisão, mudei de ginecologista – deixei uma profissional amável e prestativa e, por influência de indicações, escolhi uma médica com fama excelente em Ribeirão Preto (SP), adepta do parto normal, competente e cuidadosa. Esta se revelaria a pior escolha da minha vida.

Logo na primeira consulta, não vi nada de extraordinário, ela mal olhou em meus olhos e me atendeu em 10 minutos. Pensei: ‘Deve ser muito ocupada… Primeira consulta… Quando estiver grávida, será diferente’.

Para minha alegria, no mês seguinte já estava grávida. Recebi um pouco mais de atenção da médica, apesar de sempre muito apressada, o que me causava uma sensação de desamparo. Considerei que poderia lidar com estes sentimentos, afinal ela era a melhor profissional para o parto humanizado que eu gostaria de ter.

No sexto mês, meu marido quis conhecê-la, saber como seria dali pra frente. Naquele dia, percebi que ela estava mais aberta e resolvi perguntar como poderia evitar as temidas manchas no rosto. Ela olhou para meu marido e disse: ‘A maior preocupação das grávidas está voltada à estética, tem que ter uma paciência! Vou te indicar uma dermato”. Ficamos sem graça e fingimos não ter ouvido.

A partir de então, por diversas vezes, tentei traçar possíveis planos do meu parto com ela. Sempre deixei bem claro: ‘Quero parto normal, desde que não ponha em risco a vida do bebê nem a minha’. Repeti isso em todas as consultas. ‘Na hora certa falamos sobre isso, tenha calma! Ainda tem tempo’, ela dizia.

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Durante a gestação, me senti mal em duas ocasiões. Ríspida, ela me mandou procurar o pronto socorro, pois não poderia me atender a qualquer momento. Eu insistia. Se ela estava credenciada no convênio e eu era sua paciente, ela tinha a obrigação de me atender. Várias vezes pensei em retornar para a minha antiga médica, mas fiquei com vergonha por tê-la trocado por esta mais famosa.

No oitavo mês, voltamos ao consultório. Soube que teria de contratar a equipe dela para o parto – ela, um anestesista e um pediatra, além de uma enfermeira obstetra ou uma doula que me auxiliaria em casa, mas não no hospital. Ainda que fosse controversa essa cobrança e de legitimidade questionável, concordamos com o pagamento – fiz o pré-natal todo com ela, não fazia sentido não fazer o parto. Como seria tudo particular e tinha opção de ter uma enfermeira, resolvi que a essa profissional seria minha mãe. Quando comuniquei esta decisão, a médica disse que se ela fosse enfermeira obstetra não havia problema algum. Só que, nas próximas consultas, ela começou a questionar a presença de minha mãe comigo no parto insistentemente. Eu mantive a minha escolha mesmo assim.

A bebê nasceria com 40 semanas e recebi a orientação de que eu fosse para o hospital com 7 centímetros de dilatação. Não gostamos nada disso! Afinal, se eu tivesse que esperar os 7 centímetros, eu optaria por ter um parto em casa.

Com 38 semanas, fomos à consulta ansiosos com a aproximação da chegada do bebê e, mais uma vez, ao invés de sermos acolhidos, a cada questionamento meu, ela olhava para meu marido e dizia: ‘Tem que ter uma paciência com mulher grávida!’. Sorríamos sem graça, pois consideramos um comentário de muito mau gosto. ‘Que médica é essa? Onde foi que me meti?’, eu pensava. A essa altura estava insegura e irritada, mas pensei que era tarde demais e prosseguimos.

(Divulgação/Arquivo Pessoal)

Em janeiro, em uma terça-feira, já com 39 semanas de gestação, comecei a sentir fortes contrações na madrugada. Eu ainda estava bem tranquila e não senti necessidade de comentar com ninguém. Esperei o dia amanhecer e mandei mensagem para a médica obstetra para deixá-la a par.

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Havia um certo desconforto entre a gente desde que eu havia optado por ter minha mãe como enfermeira ao invés de contratar alguém da equipe dela. Então, ela me respondeu que minha mãe, que estava comigo, poderia cuidar de mim neste momento e que eu deveria voltar a entrar em contato apenas na hora do parto. Eu confirmei que minha mãe me auxiliaria, que me sentia segura assim.

Mas, mais tarde, em uma consulta, ela quis novamente recuperar o assunto sobre a minha mãe ser a minha enfermeira e por que não alguém indicado por ela, sendo ríspida ao tratar desta questão. ‘Preciso falar sério com você! Sua mãe sabe auscultar o bebê? Ela tem ao menos um par de luvas para fazer toque? Ela precisa te orientar em casa e saber a hora que você vai para o hospital, só aí vocês devem me avisar’. Pela primeira vez, me posicionei: ‘A minha mãe será a enfermeira a que tenho direito conforme o combinado, ela irá me orientar em casa e no hospital’. Ela tentou argumentar com meu marido, que se manteve calado respeitando minha decisão. Como não havia alternativa, ela aceitou.

Ao reafirmar que o bebê estava previsto para o domingo – e não para aquela terça-feira – ela disse para irmos para casa tranquilos, que não havia nada de anormal. E ainda insinuou para o meu marido novamente que ‘grávida dá trabalho’.

Sentindo-me desamparada, sai do consultório meio tonta e muito triste, pois não acreditava que havia me colocado naquela situação. Continuei sentindo as contrações, as dores foram aumentando e os intervalos reduzindo, passei o dia quieta e todos estavam muito tensos, talvez já percebendo que alguma coisa poderia dar errado. Era visível que a bebê iria chegar logo, logo.

Às seis horas da tarde, o tampão mucoso saiu e as contrações apertaram um pouco mais. Continuei firme em casa, estava apavorada em pensar que estaria com esta médica em breve, com medo de ela dizer que eu precisava mesmo esperar a chegada do bebê até domingo e que deveria ter os 7 centímetros de dilatação indicados. Ela provocou um estado de estresse e ansiedade muito grande em mim.

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Por volta de nove e meia da noite, com muitas dores e com contrações ainda mais ritmadas, o meu marido, angustiado, resolveu entrar em contato com ela, sem me falar, porque ele achava um absurdo eu estar passando por aquela situação sem orientações médicas. Estava com 4,5 de dilatação e as dores foram ficando insuportáveis.

Às dez horas, a bolsa estourou. Entrei em pânico, fiquei muito desesperada, porque pensava que íamos chegar lá e ela iria nos mandar de volta para casa novamente. Sem saber o que fazer se a situação piorasse, fui para o hospital seguindo as orientações da minha mãe.

Cheguei lá quase onze horas e fui internada no quarto onde faria o parto. Já não conseguia ficar em pé de tanta dor e as contrações próximas. Logo em seguida a médica chegou, em trajes informais. Fiquei aliviada ao vê-la, afinal ela era minha médica, uma profissional bem conceituada e conhecida na cidade, e queria que aquilo tudo acabasse logo e bem. Minha mãe informou a ela que havia percebido falta de evolução, apesar das contrações, que o bebê ainda estava numa posição bem alta e que talvez o mais indicado fosse uma cesárea.

Seguimos com os exames, ela confirmou a pouca dilatação e a evolução mínima. Senti que algo estava errado e pedi imediatamente para fazer uma cesárea, por favor, pois eu já não aguentava mais, não daria conta de esperar, já estava há mais de 20 horas sentindo dor. Mas ela recusou, precisávamos aguardar. Aí eu implorei pela anestesia peridural, estava sem forças, com ânsia de vômito, prestes a desmaiar. Ela também negou, alegando ter de esperar a dilatação.

Então, a coisa começou a desandar. Ela passou a agir como se eu não estivesse ali, me senti sem voz, nada do que eu falava era ouvido por ela. Dizia que estava tudo bem, para eu me manter calma, que a dor ia passar.

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A médica me colocou em uma banheira e mandou que minha mãe fizesse alguns procedimentos, apesar de ela mesmo ter insistido que minha mãe deveria apenas me dar o suporte psicológico. Enquanto isso, foi se sentar em outro canto do quarto, pegou o celular e ficou trocando mensagens, rindo. Eu olhava para ela desesperada, ainda implorando que fizesse a cesárea e me aplicasse a anestesia. Eu também sou da área da saúde e como o quadro não evoluía, eu tinha medo de passar da hora, de acontecer alguma coisa com a minha filha. Quando eu percebi esta negligência, eu comecei a gritar pedindo por ajuda.

Quando meu marido chegou no quarto, ele se desesperou com a cena. Eu olhei no olho dele e pedi que ele interferisse pela operação. Minha mãe, percebendo a situação, mas com medo de que ela fosse retirada dali, optou pelo silêncio, comportando-se como enfermeira a acatar as ordens da médica. Apesar disso, meu marido sabia que o meu desejo era realmente ter um parto normal e tentou me acalmar, acreditando que eu só pedia pela cesárea porque estava com dor. Mas eu não tinha mais força e as coisas não estavam certas. Era visível a angústia de todos.

A médica disse, então, que me encaminharia para o bloco cirúrgico, que aplicaria a anestesia com 4,5 cm mesmo, porque o quadro não evoluía. Senti que havia sofrido à toa. Meu marido e minha mãe deveriam permanecer ali, aguardando.

No bloco cirúrgico, na sala de anestesia, me colocaram na maca, mas como a dor era muito grande, eu não conseguia ficar imóvel, os intervalos das contrações estavam muito curtos e elas não conseguiam colocar o cateter. A médica mandava eu ficar quieta, que senão não seria possível, não teria como me ajudar. Um rapaz que estava lá, provavelmente um auxiliar, foi o único que ficou do meu lado, segurou a minha mão, olhou no meu olho e falou: ‘Calma, vai passar’, mas de uma forma tão amável, que me fez sentir finalmente acolhida. Quando ele começou a interferir, eu fui me acalmando, elas conseguiram colocar o cateter, mas para duas anestesias, pois talvez eu não conseguisse fazer parto normal e seria preciso seguir para a cesárea. Não conseguia mais sentir nada do peito para baixo, não dava para perceber as contrações, o momento que eu precisaria fazer força, estava meio em estado de choque, sem saber o que aconteceria dali para frente, eu não raciocinava, mas estava aliviada por ela, enfim, ter considerado a possibilidade de cesárea, a dor estava passando e a bebê iria nascer logo.

Logo depois, ela informou que faria o toque para avaliar a dilatação. Havia chegado à dilatação total. Então, ela foi trocar de roupa, buscar meus familiares e o pediatra que estava chegando. Nestes momentos em que eu estive ali sozinha, senti um misto de emoções entre choque, alegria e tristeza. Era para ser um momento especial, mas eu já não podia aproveitar.

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Ela voltou então com o restante da equipe. Colocaram o soro e o parto de fato começou. Quando percebiam as contrações, me pediam que eu segurasse nas barras laterais da cama, me agarrasse ao lençol, me puxasse e fizesse força para cima e para baixo – o que era muito difícil, porque eu não sentia nada. Fiz força mesmo assim. Já era meia-noite. A presença do pediatra me acalmava e eu buscava consolo trocando olhares com ele. Durante uma hora, eu fiz força, de toda forma possível, com o braço, com o pescoço, com o corpo e com a mente, enquanto aguardava as contrações. ‘Faça força, só depende de você, vamos colocar essa criança para fora’. Senti que, por capricho dela, teria que sair esse neném, de um jeito ou de outro, por parto normal.

Em um dado momento, ela mandou que aplicassem ocitocina, para ver se ajudaria na evolução, e aí começou outra sequência de bizarrices: ao pegar o frasco, a anestesista pediu confirmação da médica se era ocitocina, ou seja, ela não tinha certeza do que estava me dando. Aquilo causou uma estranheza em nós. Depois da aplicação, a médica foi auscultar e percebeu que os batimentos cardíacos da bebê estavam caindo, então ela mandou suspender a medicação e os batimentos voltaram.

Quando já havia passado muito tempo, os meus familiares começaram a ficar preocupados com a situação e o pediatra começou a empurrar a bebê com os braços, apoiava a mão em mim e empurrava a barriga para baixo, prática que contou com a ajuda da minha mãe, tamanha a agonia de todos.

A cena parecia um filme de terror, como se estivesse acontecendo um massacre ali. Havia sangue para todo o lado: no chão, no lençol, nas toalhas. Era o meu sangue escorrendo. Buscava olhar para o meu marido, segurava na mão da minha mãe e tentava manter a calma enquanto fazia mais força.

A bebê já havia coroado e a médica considerou fazer um parto de cócoras, ainda que anestesiada, e me colocou em pé. Me pegaram pelos braços e eu fui arrastada a uma cadeira destinada a esse tipo de parto. A médica percebeu que não daria certo este plano, pois a bebê sequer estava na posição correta, estava com o rosto encaixado na minha bacia. Era para ter nascido de cesárea, não poderia mais ser cogitada qualquer outra intervenção depois desta constatação. Me encaminharam de volta para a maca e partiram para manobras manuais. Tentando virar o rostinho da Maria, a médica enfiava a mão e uma parte do braço dentro de mim, o que era muito estranho. Eu não sentia dor, mas tinha essa sensação. Ela havia se perdido. Foi então que ela recorreu ao fórceps, mas sem me consultar ou me comunicar. Eu sei como o uso deste instrumento pode ser desastroso e o porquê aquilo estava acontecendo: já não havia outra maneira.

Depois do parto, perceberam que haviam esquecido o cateter na minha coluna – o que poderia causar mais sequelas. Quando amanheceu, outros profissionais começaram a vir para o quarto. Algumas expressões faciais me preocuparam. Como eu ainda estava sob efeito das medicações, eu só fui me dar conta da minha situação quando eu consegui ir ao banheiro sozinha e a lembrança de passar a mão em mim e me olhar no espelho me causa calafrios até hoje.

Confessionário Fernanda

E imaginar que eu cheguei a pedir desculpa, considerando que eu havia dado muito trabalho, feito muito escândalo. A impressão que tivemos foi de que esta médica deixou as coisas acontecerem para ver como nós reagiríamos, mas ela parece ter perdido o controle da situação. Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo naquele momento, mas hoje penso que ela deve ter ficado com certa birra por eu ter eleito minha mãe como enfermeira e adotou uma postura resistente em relação a isso.

Como profissional da saúde, sempre orientei as escolhas de minhas pacientes, para que não permitissem violência de qualquer natureza, e estava eu ali, por ironia do destino, sofrendo uma violência obstétrica. Fui mutilada por orgulho ou vaidade, menos por amor. O momento que deveria ser só de alegria se transformou num momento de muita dor, de muita tristeza. Fui desrespeitada por não considerarem o meu desejo, garantido por lei. A bebê foi retirada com fórceps sem que me comunicassem esta decisão, ainda que não houvesse outro jeito.

Os traumas físicos em mim envolvem sangramento e inchaço vaginal. Minha vagina e a minha vulva ficaram dilaceradas, rasgadas, recebi aproximadamente 11 pontos muito dolorosos, a musculatura do meu períneo ficou machucada, além do deslocamento da bexiga, que ficou em posição muito baixa impedindo o canal da urina – eu só conseguia fazer xixi quando não havia mais espaço para armazená-la. O trauma interno foi bem danoso devido aos procedimentos com mão e fórceps. Além disso, quando estou caminhando, sinto a musculatura da perna falhar e isso vai demorar para voltar ao normal. Disseram que só após a amamentação será possível avaliar se eu precisarei de cirurgia para colocar os órgãos no lugar.

Já os danos de ordem psicológica me acompanham até hoje. Sinto não ter podido segurar e cuidar da minha filha logo após o parto como eu havia desejado. Durante as três primeiras semanas, eu não conseguia ficar em pé nem sentada, eu só ficava deitada, e a maior parte do tempo dopada. Eu perdi as primeiras semanas dela. Não me lembro de nada. A dor era terrível. Eu só amamentava e depois meu marido e minha mãe cuidavam dela. Isso me machuca muito, dói! Eu não conseguia conversar com as pessoas, só chorava e fui tomando consciência aos poucos das agressões que eu havia sofrido e da forma violenta como a minha filha foi tirada de mim.

Os traumas da Maria foram o rosto marcado e parte do couro cabeludo arrancado, o que levou tempo para se recompor. Ela não consegue ficar bem quando encostamos alguma coisa na cabeça dela, ficou traumatizada de como ela foi arrancada de mim, ela chora, perde o fôlego, fica roxa de tanto gritar sempre que vamos trocar a sua roupa. A gente também tem medo que ela possa desenvolver alguma desordem ou transtorno decorrente do uso do fórceps.

Todos os dias eu olho para a minha filha e me preocupo se ela vai ficar bem. Olho para o meu corpo e penso por que foi acontecer isso. Sinto a tristeza nos olhos das pessoas próximas a mim e a tristeza nos meus próprios olhos. Não tem nenhuma forma de consolar isso que eu sinto.

Que uma mãe nunca aceite entrar em uma sala de cirurgia sem acompanhante, é direito. Que as mães fiquem atentas aos seus sentimentos; não aceitem ou permitam ser desrespeitadas, façam valer seus direitos”.

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