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Coronavírus: “Mesmo grávida, quero trabalhar. É pra isso que fiz medicina”

Gestando e atendendo em dois hospitais, Renata Rachid não pensa em parar de trabalhar: "Não acho justo ficar vendo de longe, sendo que posso contribuir".

Por Fernanda Tsuji
Atualizado em 3 abr 2020, 12h32 - Publicado em 3 abr 2020, 12h20

Voltando de uma viagem dos sonhos, Renata Rachid Ervilha, de 27 anos, descobriu que estava grávida. Apesar de não ter sido planejado, a notícia gerou felicidade na família toda – mas foi logo seguida de uma grande preocupação. Afinal, estamos falando de uma gestação que será vivida em um tempo marcado pela pandemia do coronavírus.

E com um detalhe preocupante: Renata, que está de dois meses, é médica e está na linha de frente do combate à doença. Ela trabalha em duas unidades de pronto atendimento na cidade em que mora, Mogi das Cruzes (SP). “Fiquei pensando sobre como eu poderia, ao mesmo tempo, estar ajudando e também trazendo o mínimo de risco para o meu bebê. Porque eu não vou mentir: confesso que eu temo também pela saúde do meu nenê, da minha gestação, claro”, conta. 

Confira o relato de Renata na íntegra:

“Foi uma surpresa. Eu namoro há quatro anos e moro com meu namorado, Leandro, há dois. Não estávamos usando nenhum método contraceptivo, mas também não esperávamos que fosse acontecer agora. Em fevereiro, fizemos uma viagem para Fernando de Noronha, nosso sonho, para comemorar o aniversário de namoro e foi onde acabei engravidando. Logo que voltei, minha menstruação atrasou e eu descobri bem no comecinho da gestação, com cinco semanas. Ficamos muito felizes e nossa família também. Ainda não estava este caos e o coronavírus ainda não tinha chegado ao Brasil. Acho que ninguém estava esperando que aconteceria algo assim. 

Neste primeiro momento, eu estava tranquila, cumprindo meus plantões normalmente. Não estava tão preocupada, porque não achei que ganharia esta proporção. Eu trabalho em uma Unidade de Pronto Atendimento no bairro do Rodeio, aqui em Mogi das Cruzes, e também em um posto de saúde no bairro de Brás Cubas. São quatro vezes por semana em plantões de doze horas.

Quando o coronavírus começou a dar as caras, a gente tratava apenas como casos suspeitos os pacientes que tinham tido alguma viagem ao exterior, onde, naquele momento, era o foco do coronavírus, ou contato próximo com alguém nestas condições. Mas eram poucos casos e continuávamos atendendo outras emergências e doenças. A transmissão ainda não era comunitária, que é quando o vírus não tem mais o ponto inicial e passa a circular na população.

O vírus chegou e mudou tudo…

Quando isso passou a acontecer, aí sim mudou tudo na rotina do plantão. Eu sempre tomei muito cuidado, toda hora lavando a mão e passando álcool, mas depois que começou o surto, veio a preocupação maior com os EPIs (equipamentos de proteção individual). Usamos o tempo todo máscara, óculos, touca… Porque a partir deste momento, a gente não sabia mais quem estávamos atendendo, se, de fato, era só um resfriado, uma gripe, ou se podia ser um paciente com coronavírus. Foi aí que comecei a ficar mais preocupada com gestação também. 

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Todos os funcionários e as unidades começaram a se reorganizar justamente para diminuir o contato dos profissionais de saúde com os infectados. E aí nos dividimos: alguns consultórios só atendem casos de síndromes respiratórias, e outros seguem atendendo as demais queixas. 

Foi neste momento, quando comecei a ter mais contato com os casos suspeitos, que vi que tava chegando mais perto, estávamos mesmo tendo risco de contágio maior ao estar ali no pronto-socorro atendendo. Neste meio tempo, eu tive a minha segunda consulta de pré-natal e conversei bastante com minha médica. Pedi a opinião pessoal e profissional dela para analisar os riscos. 

Para as gestantes, a princípio, não se está observando uma gravidade maior como o que acontece com outras doenças como influenza, em que a grávida apresenta um quadro mais grave. De acordo com os estudos em outros países e segundo o Ministério da Saúde, as gestantes de baixo risco (onde não existe doença pré-existente), meu caso, por enquanto, não possuem um risco aumentado em comparação com a população em geral.

Mas é preciso entender que os casos estudados ainda são limitados, é tudo muito novo ainda. Uma das principais pesquisas indica que não existe transmissão via transplacentária. Mas os estudos foram com gestantes de final de gestação que adquiriram o vírus. Não sabemos ainda como estão as mulheres que adquiram a doença no primeiro trimestre, que é o meu caso, quando o bebê ainda está em formação. Estas crianças ainda não nasceram, eles ainda vão ser estudadas.

Tudo isso foram pontos que a gente conversou durante a minha consulta de pré-natal. Minha médica me disse: “Olha, eu sei que é ruim falar para você parar de trabalhar, porque a gente tem uma obrigação por conta da profissão que a gente escolheu, mas se você puder, evite ao máximo a exposição”. 

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Eu saí da consulta e fiquei pensando muito sobre como eu poderia ao mesmo tempo estar na linha de frente ajudando e também trazendo o mínimo de risco pro meu bebê. Porque eu não vou mentir: confesso que eu temo também pela saúde do meu nenê, da minha gestação, claro. Aí pensei muito e me decidi.

Na linha de frente, mas resguardada

Quando chegou o dia do plantão, eu conversei com as equipes e pedi pra ficar mais resguardada dos atendimentos de síndromes respiratórias, tentando atender somente as outras emergências e queixas, já que os consultórios estão divididos.

É claro que ainda tem o risco de estar no hospital, de atender pacientes que têm o vírus e podem estar assintomáticos, procurando o hospital com uma dor mas sem se dar conta de que pode ser uma síndrome respiratória. Sim, ainda tem o risco, né? Mas assim diminui minhas chances e foi a forma que eu encontrei de continuar ajudando a população. 

Como médico, a gente tem a obrigação, ainda mais num momento difícil como este. Não é hora de abandonar o barco e eu faço questão de estar aqui, de poder ajudar como cidadã mesmo. Foi para isso que eu fiz medicina.

 

Não quero abrir mão dos plantões, mas tentei me organizar, me estruturar de uma maneira que eu pudesse estar ajudando, mas que me trouxesse um risco um pouco menor. Eu continuo firme no trabalho, mas tô ficando mais resguardada nos últimos consultórios do posto.

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Claro que redobrei as medidas de higiene, principalmente na hora de se desparamentar, que é quando temos que tirar toda a roupa, máscara, avental, gorro e óculos. São momentos cruciais, porque é quando você pode acabar adquirindo o vírus. Acho que é o momento em que fico mais apreensiva. É o caso da hora de ir ao banheiro, por exemplo, quando tem que tirar tudo e depois colocar de novo. Eu tomo muito cuidado.

(@renatarachid/Instagram)

Tensões da rotina

Realmente o clima mudou muito na unidade e está mais pesado mesmo. Todos os profissionais de saúde estão mais tensos. É preciso ficar se policiando pra não levar a doença pra casa e contaminar alguém que seja do grupo de risco. Muitos profissionais moram com os pais, idosos ou com pessoas com comorbidades, que possuem um risco maior de adquirir a doença da forma mais grave e ir a óbito. Já vi muito profissional chorando por conta disso, por medo, principalmente quando chegam os pacientes mais graves e precisando de intubação ou de transferência.

Acho que se pudesse, minha família me colocaria num potinho fechado em casa. Mas eu sei que eles também entendem que esta foi a profissão que eu escolhi. É que na minha casa, ninguém é da área da saúde, não tenho pais médicos ou enfermeiros, então a realidade é muito distante. Eles não sabem como funciona dentro de uma unidade básica de saúde, acabam ficando com muito medo. Minha mãe sempre me fala: “Renata, fica em casa, não vai trabalhar pelo menos esta semana”. Enfim, é preocupação de mãe, mas foi a profissão que eu escolhi. No fim, eu acho que eles acabam entendendo.

Neste momento, não acho justo eu ter que dar um passo para trás e ficar vendo de longe, sendo que, de alguma forma, eu posso contribuir. Eu sei que estou na linha de frente, mas eu consegui dar um jeito de diminuir os riscos para minha gravidez e, ao mesmo tempo, ajudar a população.

O medo maior é quando você pensa que pode ser o responsável por transmitir a doença para alguém que você gosta. Eu moro só com o meu namorado e ele não é grupo de risco, é jovem e não tem nenhuma comorbidade, então eu fico um pouco mais tranquila. Mas mesmo assim, tomo o maior cuidado possível. Tiro o sapato antes de entrar no apartamento, corro pra lavanderia, tiro a roupa e jogo tudo na máquina pra lavar. Lavo a mão de novo, corro pro banheiro pra tomar banho e assim diminuir o máximo possível a contaminação. Não vou pra casa dos meus pais e da minha sogra, que era minha rotina antes. Acabamos ficando mais reservados mesmo, só eu e ele dentro do apartamento. 

Acho que não estou vivendo de fato a ansiedade da gestação. Mas, sinceramente, eu acho que é porque não tive tempo para parar pra pensar, sabe? Minha preocupação maior agora está sendo como enfrentar de uma forma que ofereça o mínimo de risco pro meu bebê e só. 

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Pensar na gestação, em começar o enxoval, em como vai ser o parto, são coisas que eu ainda não consegui parar pra planejar. Tanto que eu nem descobri o sexo do bebê ainda. Poderia ter feito o exame há umas semanas atrás, mas não aconteceu. Uma pra não ficar me expondo, porque não é um exame essencial para fazer agora, e outro porque eu acho que tudo ao seu tempo.

Estou vivendo assim, esperando passar logo essa onda, esta avalanche, para poder levantar, respirar e falar: “agora vamos lá, deixa eu viver a minha gravidez”. Por enquanto, é viver um dia após o outro.

(Renata Rachid/Arquivo Pessoal)
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